O globo, n. 31015, 07/07/2018. País, p. 3

 

Benesses sob investigação

Bruno Abbud

Berenice Seara

07/07/2018

 

 

MP vai apurar atuação de Crivella durante encontro secreto com pastores no Palácio da Cidade

Um dia após a revelação de que o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB), ofereceu benefícios a fiéis de igrejas evangélicas e promoveu um pré-candidato a deputado federal de seu partido, em encontro secreto no Palácio da Cidade, o Ministério Público Estadual anunciou a abertura de diferentes frentes para investigar o caso. De acordo com o procurador-geral de Justiça, Eduardo Gussem, o MP deve apurar se houve improbidade administrativa e abuso de poder político, o que configuraria também crime eleitoral. Na Câmara Municipal, um grupo de vereadores passou a defender a abertura de processo de impeachment.

Na reunião, acompanhada pessoalmente e registrada por O GLOBO, Crivella indica servidores capazes de facilitar a realização de cirurgias de catarata, varizes e vasectomia aos fiéis das igrejas ali representadas, bem como oferece o contato de outro funcionário público para garantir a isenção de IPTU em imóveis utilizados pelos religiosos. No mesmo evento, ele afirmou que os pastores deveriam aproveitar o fato de ele ser prefeito para melhorar o acesso de fiéis às igrejas, com pedido de obras de lombadas, instalação de sinais de trânsito e até mesmo mudança do endereço de pontos de ônibus.

— Vamos aproveitar esse tempo na prefeitura para arrumar nossas igrejas — disse Crivella.

Para o procurador-geral de Justiça, que deu entrevista à TV GLOBO, os indícios mostram que o evento com pastores fugiu ao interesse público e pode ter configurado crime.

— O áudio é muito forte. Evidencia que o prefeito Marcelo Crivella privilegia um grupo de pessoas. Grupo esse composto na sua essência por pastores e líderes religiosos. E isso, juridicamente falando, foge à finalidade principal, que deve ser o interesse público. E fere o princípio da impessoalidade, em que todos os cidadãos têm que ser tratados em igualdade de condições — afirmou Gussem, antes de acrescentar: — O MP vai tomar providências no âmbito da improbidade administrativa e no âmbito eleitoral, uma vez que, inclusive, está evidenciado que tinham pré-candidatos à eleição que se avizinha junto com o prefeito. Vai investigar para verificar se há provas consistentes de abusos de poder político. E encaminhar para o procurador-regional eleitoral para que forme seu juízo de valor.

A promotoria da área da Saúde foi informada sobre o encontro para “fiscalização da política de regulação no SUS”, de acordo com o MP. Os promotores também avaliarão a “inobservância da laicidade do estado”, o que pode configurar improbidade administrativa por parte do prefeito Crivella.

“A coordenação das Promotorias de Justiça da Cidadania distribuiu para análise em inquérito civil por considerar a possibilidade de inobservância da laicidade do estado, conferindo tratamento privilegiado aos fiéis de um determinado segmento religioso, o que é vedado pela Constituição e pode, em tese, configurar improbidade administrativa”, diz trecho da nota enviada pelo MP.

Ainda de acordo com o MP, o Centro de Apoio às Promotorias Eleitorais recebeu recomendação para investigação de crimes eleitorais. Uma eventual ação dependerá do procurador-regional Eleitoral, Sidney Madruga.

O encontro secreto com 250 líderes de igrejas evangélicas, chamado de “Café da Comunhão”, ocorreu na última quarta-feira. Na ocasião, Crivella esteve acompanhado pelo pastor Rubens Teixeira, pré-candidato a deputado federal pelo PRB. Diante dos religiosos, o prefeito fez uma série de elogios a Teixeira que, segundo ele, “passou pelo fogo e nem um fio de cabelo queimou”, em referência à gestão do aliado como diretor financeiro da Transpetro, empresa investigada na Operação Lava-Jato. O prefeito, contudo, não mencionou aos pastores que o pré-candidato virou réu em ação por peculato e dispensa ilegal de licitação à época em que trabalhava na subsidiária da Petrobras, crimes negados por Teixeira.

PSOL DEFENDE IMPEACHMENT

Além das frentes abertas pelo MPE, o PSOL pretende entrar com um pedido de impeachment contra o prefeito por indícios de improbidade administrativa no oferecimento de facilidades a fiéis e pastores. A Câmara está em recesso e só volta a funcionar em agosto. O PSOL não tem maioria na Casa. A vereadora Teresa Bergher (PSDB) pretende pedir à Mesa Diretora da Câmara a suspensão do recesso para analisar o assunto. — Há sérios indícios de crimes cometidos pelo prefeito, que podem levá-lo ao impeachment. A Câmara precisa se reunir imediatamente. O prefeito rompeu com os princípios da moralidade e da imparcialidade. Ele foi eleito para governar a cidade, não para determinado grupo religioso — disse ela, que pretende colher assinaturas dos colegas para apresentar um requerimento de abertura de CPI. Ontem, em sua página no Facebook, o prefeito se manifestou sobre o caso. Na postagem, Marcelo Crivella afirma que “a mídia tendenciosa divulgou o nosso trabalho de maneira equivocada. É triste notarmos o quanto ainda precisamos avançar no âmbito da luta contra o preconceito religioso. Em nossa gestão, todas as religiões sempre foram e serão muito bem recebidas”. Diz ainda que “desde o início da nossa gestão, recebemos os mais diversos representantes da sociedade civil. Foram mais de 1.000 reuniões para tratarmos dos mais variados assuntos, portanto esta não foi a primeira e não será a última. É comum que um gestor municipal receba líderes de diversas áreas da sociedade para ouvi-los de perto e apresentar soluções para as demandas daquele grupo”. E conclui: “É inadmissível que uma cidade como o Rio de Janeiro, em pleno desenvolvimento, sofra consequências de atitudes preconceituosas e intolerância religiosa. Não iremos permitir que isso aconteça.

FRENTES DE APURAÇÃO

CIRURGIAS ELETIVAS:

Crivella apresentou aos religiosos servidores da cidade do Rio que podem facilitar o acesso de fiéis das igrejas evangélicas a cirurgias de catarata, varizes e vasectomia

IPTU:

O prefeito também indicou funcionário público capaz de solucionar com velocidade impasses relacionados à cobrança de IPTU de imóveis utilizados pelos religiosos

OBRAS E MELHORIAS.

Também será investigado pelo MPE o possível privilégio oferecido aos pastores para obras que facilitem o acesso de fiéis às igrejas, como lombadas, novos sinais de trânsito e até mesmo a mudança de endereço de pontos de ônibus

CAMPANHA IRREGULAR.

O procurador eleitoral, Sidney Madruga, analisará se houve promoção ilegal da pré-campanha de Rubens Texeira (PRB). Além disso, o MPE investigará se o Palácio da Cidade foi utilizado de forma indevida para atividade

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Crivella e a mistura explícita entr política e religião

Thiago Prado

07/07/2018

 

 

Falas de prefeito do Rio convergem com plano de poder de seu tio Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus; Desde a posse, prefeito deixou de lado promessas de campanha e fez ações em linha com os interesses dos evangélicos

Lançado em 2008, o livro “Plano de Poder”, do bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, prega a entrada dos evangélicos no jogo eleitoral. “O que falta aos cristãos para se estabelecerem politicamente? Ações bem coordenadas”, escreveu. Desde então, o PRB, partido ligado à igreja, só ganhou musculatura. Tem hoje 21 deputados em Brasília e saiu das urnas há dois anos com mais de cem prefeituras espalhadas pelo país. A principal delas, a do Rio de Janeiro, conquistada por Marcelo Crivella, sobrinho de Macedo.

Durante a campanha eleitoral de 2016, Crivella teve como meta a redução da sua rejeição diante do eleitor carioca. Jurou diversas vezes que não misturaria política com religião caso eleito. Após um ano no cargo, em entrevista à revista “Veja” em janeiro deste ano, deu novo sentido aos seus conceitos. Afirmou que o problema não era misturar política e religião mas, sim, Estado e Igreja. E insistiu que seu governo não fez nada disso desde 1º de janeiro do ano passado.

O discurso é questionado por opositores: afinal, nomear dois bispos da Universal para cargos estratégicos (João Mendes, na Assistência Social, e Jorge Braz, no Procon) não entraria no requisito da mistura? Por acaso a religião do prefeito pesou na hora de cortar recursos de eventos como a Parada Gay e da tradicional procissão de homenagem a Iemanjá no Rio? Sequer pisar no Sambódromo em dias de desfile das escolas de samba tem a ver com as crenças de Crivella? A negativa está sempre presente na fala oficial, mas a dúvida permanece no debate político.

Em poucos dias de administração, a prefeitura quis mudar a sua logomarca para introduzir na palavra Rio um sutil número 10, justamente o usado pelo PRB. O projeto foi parar na Justiça e acabou barrado. A era Crivella também foi a responsável por colocar na rua um inédito censo religioso por meio de formulário em que os integrantes da Guarda Municipal eram questionados sobre a sua religiosidade (o motivo da iniciativa jamais foi esclarecido até hoje). Seu governo deu ainda nome de rua para lideranças evangélicas e permitiu viagens internacionais com direito a visitas do prefeito às sedes da Universal pelo mundo.

Em uma fala direcionada apenas a evangélicos, na noite de quarta-feira, Crivella prometeu facilidades no acesso às cirurgias de catarata e na aprovação de isenção de IPTU para igrejas, em discurso flagrado pelo GLOBO. Tudo ao lado de um précandidato do PRB a deputado federal. “Nós temos que aproveitar que Deus nos deu a oportunidade de estar na Prefeitura para esses processos andarem”, defendeu Crivella em alto e bom som. Na semana que passou, Crivella elevou ainda mais os indícios de que sua atuação como prefeito tem a meta de fazer avançar o poder de sua igreja mesmo que, em alguns momentos, fira princípios básicos do estado laico.”