O globo, n. 31015, 07/07/2018. País, p. 4

 

O quarteto de quebra-galhos de Marcelo Crivella

Luiz Ernesto Magalhães

Bruno Abbud

Diego Amorim

07/07/2018

 

 

O encontro entre o prefeito Marcelo Crivella e pastores de igrejas evangélicas do Rio no Palácio da Cidade, na última quarta-feira, terminou com uma recomendação expressa do prefeito: quem tivesse algum problema a ser resolvido pela prefeitura deveria procurar sua equipe de assessores. Após o aviso, uma aglomeração se formou em torno de quatro deles: “Márcia e Marquinhos” ficaram responsáveis pelos pedidos na área da Saúde, como cirurgias de cataratas, varizes e vasectomia; “Manassés” atenderia quem precisasse resolver questões de vício em drogas; e “Dr. Milton” cuidaria dos pastores afetados por pendências com o IPTU.

Segundo o prefeito, Márcia é sua assessora há 15 anos. O nome completo dela, Márcia da Rosa Pereira Nunes, consta da lista de funcionários do gabinete de Crivella no Senado. Ele ocupou o cargo de senador até o fim de 2016, antes de assumir a prefeitura. No início de 2017, Márcia foi nomeada coordenadora técnica da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb), em função de confiança. Também presente no evento, o pastor e pré-candidato a deputado federal pelo PRB, Rubens Teixeira, chegou a presidir a Comlurb por dois meses este ano.

— É muito importante os irmãos ficarem com o telefone da Márcia ou do Marquinhos porque às vezes ocorre um imprevisto. Se houver caso de emergência, liga para a Márcia e ela liga para mim — afirmou Crivella.

Pastor da Igreja Universal, Marquinhos é Marcos Paulo de Oliveira Luciano, assessor especial do gabinete do prefeito. Ele acompanhou Crivella durante seu trabalho de missionário na África e também no desenvolvimento de um projeto social na fazenda Nova Canaã, em Irecê, na Bahia, ambos na década de 1990. Coordenador de várias campanhas eleitorais de Crivella, em 2012 tentou se eleger vereador, sem sucesso. Exassessor de Crivella no Senado, apresenta-se publicamente como “coordenador do projeto Cimento Social”.

Atualmente, o assessor Douglas Manassés Correa é coordenador do programa Novos Caminhos da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, comandada pelo vereador licenciado e bispo da Igreja Universal, João Mendes de Jesus. O programa foi criado este ano com o objetivo de recuperar usuários de drogas que vivem nas ruas. Manassés também preside o Instituto Manassés, uma ONG ligada à Igreja Universal que trabalha com a recuperação de dependentes químicos. No ano passado, a entidade tentou se habilitar para receber recursos públicos e para atender usuários de drogas, mas a inscrição não foi aprovada pelo Conselho Municipal de Assistência Social.

Manassés também foi candidato a vereador pelo PRB em 2016, mas não se elegeu. A fiscalização do TRE descobriu, naquele ano, ligações da sua ONG com a campanha do prefeito Crivella. Na época, material de campanha do prefeito foi apreendido no instituto que leva o nome do assessor.

O GLOBO apurou que “Dr. Milton” é um advogado que trabalha como assessor do pastor Marcos Luciano no 15º andar do Centro Administrativo da Cidade Nova. Sua função é prestar consultoria jurídica tributária para entidades religiosas.

CIRURGIAS ESCASSAS

Sindicatos ligados à área da Saúde planejam uma manifestação para “conhecer a Márcia” em frente à sede da prefeitura na próxima quarta-feira.

O aposentado Carlos Alberto Mathias, de 81 anos, aguarda há quase um ano uma cirurgia de catarata. Sem enxergar praticamente mais nada, ele é obrigado a viver tateando objetos pela casa.

Tarefas simples, como fazer as próprias refeições ou escolher uma roupa, já não são mais possíveis para o idoso, que espera pelo momento em que voltará a enxergar.

— Preciso dessa cirurgia para voltar a ter alegria de viver. Já pensei até em acabar com a minha vida.

Ele se cadastrou para a cirurgia em agosto do ano passado, mas até agora não conseguiu operar.

A mesma dificuldade vive a também aposentada Hilda Santana, de 77 anos. Sua filha chegou a buscar o mutirão de cirurgias, mas foi informada que elas só voltariam a ser marcadas em 2019.

Segundo a Secretaria Municipal de Saúde do Rio, 228 mil pacientes aguardam consultas, exames e cirurgias de baixa complexidade. O tempo de espera por uma consulta oftalmológica pode chegar a 681 dias.

Raphaela Jahara, coordenadora de Saúde e Tutela Coletiva da Defensoria Pública do Rio, disse que a instituição solicitou à prefeitura que aumente a oferta de cirurgias contra catarata, mas não obteve resposta.

— Estamos apurando denúncias sobre pessoas que passaram na frente de algumas filas da Saúde, como no caso da mãe do prefeito Crivella no Hospital Salgado Filho. Essas filas têm que ser seguidas à risca, não pode haver critérios para que outras pessoas passem na frente. O critério é o risco e não a opção religiosa.

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Pré-candidato do prefeito, Indio afirma que reunião foi um 'erro'

Fernanda Krakovics

07/07/2018

 

 

Deputado se disse ‘surpreso’ com encontro; adversários não comentam

Pré-candidato do prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB), a governador, o deputado federal Indio da Costa (PSD) disse ontem que foi um “erro” a reunião secreta, no Palácio da Cidade, na qual foram oferecidas facilidades a fiéis e pastores de igrejas evangélicas, como cirurgias e isenção de IPTU, na última quarta-feira.

— Foi um erro, ninguém ganha nada com isso. Essa reunião não foi boa para a sociedade, não foi boa para o Crivella nem para os evangélicos. A prefeitura tem que trabalhar para todo mundo, não só para quem tem acesso ao prefeito — afirmou Indio.

O pré-candidato do PSD negou que vá se beneficiar, nas eleições deste ano, dos privilégios oferecidos por Crivella, que é bispo licenciado da Universal, aos evangélicos:

— É uma prática desnecessária e certamente isso daí não me beneficia em nada. Nem ele (Crivella) se beneficia, na minha opinião.

O deputado disse ainda ter ficado “muito surpreso” com o encontro, revelado pelo GLOBO. No primeiro turno da eleição de 2016 para a prefeitura, Indio chegou a afirmar que Crivella, seu então adversário, usava a estrutura da Igreja Universal em prol de sua candidatura. No segundo turno os dois selaram aliança.

Em fevereiro deste ano, logo após deixar a Secretaria de Urbanismo da gestão Crivella para concorrer a governador, Indio disse ao GLOBO que a influência da igreja na prefeitura era “zero”, e que o prefeito não usava a máquina a favor da Universal.

ADVERSÁRIOS EM SILÊNCIO

Os pré-candidatos a governador Eduardo Paes (DEM) e Anthony Garotinho (PRP) — este último também evangélico — não quiseram comentar a reunião no Palácio da Cidade. Já a assessoria de imprensa do pré-candidato do Podemos, senador Romário, disse que ele não foi localizado.

O eleitorado evangélico costuma ser disputado no Rio. Segundo o Censo de 2010, esse segmento somava 4,6 milhões de pessoas no estado, ou seja, 29% da população. Só os pentecostais, que englobam a Universal, eram 2,5 milhões há oito anos, o que corresponde a 15,7% dos residentes no Estado do Rio.

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Ricardo Mariano: 'A igreja vem em primeiro lugar', diz sociólogo sobre expoentes da Universal
 
Ricardo Mariano
 
Igor Mello
 
07/07/2018
 
 
 
 

Doutor em sociologia da religião, professor da USP afirma que Crivella tenta passar imagem de político secular, mas está a serviço de projeto de poder

Autor do livro “Neopentecostais”, que analisou a expansão evangélica no país desde 1970, o sociólogo Ricardo Mariano, da USP, é categórico: a Igreja Universal tem um projeto de poder concretizado através do PRB. Para ele, a estratégia de moderar o discurso de olho no centro esbarra na visão de mundo de seus expoentes, pautada pela religião, como Crivella e outros bispos e pastores da Universal.

Crivella tenta cultivar em público uma imagem moderada, mas demonstra dificuldade em se dissociar do discurso religioso. Por quê?

A igreja vem em primeiro lugar. Tudo mais, toda atividade político-partidária vem a reboque dos interesses da igreja. O grande projeto que ancora (o PRB) é o fortalecimento da Universal. Por isso há esses curto-circuitos.

O discurso dele muda quando fala para pastores ou fiéis?

A face pública dele é tentar passar a imagem de um político secular. De que o bispo está licenciado, e que vai governar para toda a população. Crivella domina a “gramática” secular. Em reuniões internas do PRB ele fala abertamente que o partido é da igreja, mas você nunca verá nenhuma liderança do PRB afirmar que o partido é da Igreja Universal. Elas são treinadas para rejeitar isso como se fosse uma grave acusação.

Esse tipo de prática viola o conceito de Estado laico?

Nessa reunião secreta e nada republicana, o prefeito demonstra que governa volta e meia como bispo evangélico. A laicidade prevê a separação de igreja e Estado, e o tratamento isonômico entre igrejas e religiões. Proíbe, portanto, que cargos públicos e recursos municipais sejam empregados para privilegiar autoridades, políticos ou seguidores de um grupo religioso em detrimento dos demais cidadãos.

Fala-se muito que a Igreja Universal tem um projeto de poder. Como ele funciona?

O PRB tem procurado se aproximar de outras igrejas e lideranças. É uma tentativa de ampliar sua base social e eleitoral. Há uma tentativa de se mostrar menos sectário. Tenta fugir do estereótipo do PSC, do Feliciano (pastor Marco) e outros políticos de extrema direita.

Esse movimento influencia nas alianças que o PRB faz?

É um partido extremamente pragmático, uma espécie de MDB evangélico. Participou dos governos do PT desde o segundo turno de 2002 até o impeachment. Nos estados e municípios governa com tucanos e emedebistas. O PRB invariavelmente é governo e não vai ser encontrado na oposição. É um projeto ambicioso, tem potencial de se tornar um partido grande no Brasil. Em 2016 já alcançou o patamar de partido médio e tende a crescer.

Há denúncias de uso eleitoral de igrejas. A Justiça consegue lidar com essa questão?

A Justiça Eleitoral crescentemente vem criando a figura do abuso do poder religioso, que ainda não tem um marco legal, para enquadrar pastores e políticos que fazem propaganda dentro dos templos. Há centenas de processos com essa natureza na Justiça.