O globo, n. 31014, 06/07/2018. Economia, p. 15

 

Uma nova gigante global

Danielle Nogueira

Geralda Doca

João Sorima Neto

Roberta Scrivano

06/07/2018

 

 

Boeing e Embraer fecham acordo na área de aviação comercial. Ação dá fôlego à fabricante brasileira

Após meses de negociações e expectativa, Embraer e Boeing anunciaram ontem acordo que cria uma gigante global na área de aviação comercial, com aeronaves de 70 a 450 lugares. A aliança dará novo fôlego à Embraer, que ganha escala, reduz custos e aumenta sua competitividade. A operação já era esperada no mercado desde que a europeia Airbus se associou à canadense Bombardier (de jatos regionais) no ano passado e, na prática, consolida um duopólio na indústria de aviação mundial.

O negócio anunciado ontem prevê que uma terceira empresa seja criada, na qual a companhia americana terá 80%, e a fabricante brasileira, 20%. Ela ficará com a área de aviação comercial da Embraer. A Boeing pagará US$ 3,8 bilhões por sua fatia na joint venture. A Embraer permanecerá como uma empresa independente e de capital aberto com as áreas de defesa, aviação executiva (jatos pequenos) e serviços. O acordo foi anunciado pelas duas empresas, sem a participação do governo, embora dependa do seu aval e de autoridades regulatórias. Segundo fontes, a estratégia era mostrar que não houve ingerência, mas a União já havia estabelecido premissas básicas para as tratativas.

A Boeing é a maior exportadora dos Estados Unidos, com faturamento anual de mais de US$ 90 bilhões e 140 mil funcionários. Já a Embraer, fundada durante o regime militar, em 1969, e privatizada em 1994, no governo de Itamar Franco, é considerada a joia da coroa na aviação brasileira. Tem faturamento de US$ 6 bilhões por ano e cerca de 6 mil empregados. Após a fusão, a nova empresa, que ainda não tem nome, terá um portfólio amplo: atuará tanto no segmento de aviões de até cem lugares, nicho em que a Embraer é líder e tem a Bombardier entre suas principais rivais, e no segmento de aviões de grande porte, de até 450 assentos, em que a americana e a europeia Airbus travam um duelo há décadas.

SEM GARANTIA DE MANTER EMPREGOS

Segundo analistas, o acordo é um jogo de ganha-ganha. No ano passado, a Airbus comprou 50,01% do programa C-Series da canadense Bombardier, sua estreia na aviação regional. A Boeing viu na fusão com a Embraer um caminho para não ficar para trás e entrar no mercado de aviões de pequeno e médio portes, nicho em que não atuava. A Embraer, por sua vez, percebeu que o casamento com a americana lhe daria acesso a uma rede comercial mais ampla, impulsionando a venda de seus novos jatos (os EJets), bem como lhe asseguraria ganhos de escala na negociação com fornecedores. O movimento é apontado como essencial para ambas num momento em que rivais em Rússia, Japão e China começam a ganhar espaço no setor.

— Se todo mundo anda para frente e você fica parado, na verdade, dá um passo atrás. Após o acordo do Airbus com a Bombardier, Boeing e Embraer precisavam se mexer. Com o anúncio, as duas voltaram ao pelotão — disse Humberto Bettini, pesquisador de transporte aéreo da USP de São Carlos. — A Embraer vai vender a divisão responsável pela maior parte de sua receita, mas isso não é necessariamente ruim. É melhor ter 20% de um grande restaurante ou 20% de um quiosque na praia?

A nova joint venture terá capital fechado. A Embraer poderá optar por vender sua fatia para a fabricante americana ao longo dos próximos dez anos e terá direito a uma cadeira no Conselho de Administração da nova empresa. O memorando de entendimentos assinado ontem inclui tanto a fabricação de aeronaves quanto os serviços de aviação comercial. A expectativa é que a transação seja fechada até o fim de 2019. Estima-se que as sinergias de custos alcancem US$ 150 milhões ao ano. A efetivação do acordo apenas no ano que vem foi uma das razões por trás do tombo de 14,28% das ações da Embraer, a maior queda em 17 anos.

— É uma solução positiva para uma situação inexorável. A Embraer precisa se reposicionar — disse Dyogo Oliveira, presidente do BNDES, que tem 5,4% da Embraer.

A empresa resultante da fusão será uma subsidiária integral da Boeing e vai se reportar diretamente à fabricante americana. Mas a sede, a diretoria e a linha de montagem dos aviões permanecerão no Brasil. Segundo uma fonte, a própria Boeing era favorável a essa estrutura, pois não queria perder a equipe de engenheiros e técnicos da Embraer, com uma eventual transferência da unidade. O corpo técnico e a área de pesquisa da empresa estão entre seus principais ativos. A Embraer é dona de 360 patentes, 47 delas obtidas em 2017.

Em comunicado interno, o presidente da Embraer, Paulo César de Souza e Silva, disse estar “totalmente focado na construção da perpetuidade da Embraer, bem-estar dos empregados e manutenção dos empregos”. O acordo, porém, não prevê a manutenção de vagas, segundo fontes.

Segundo fontes do governo, a única garantia é a preservação da área de engenharia e de inovação tecnológica. Embora o governo brasileiro ainda tenha que aprovar oficialmente o negócio, ele estabeleceu três premissas que deveriam nortear as negociações — as conversas começaram em dezembro. Uma delas era justamente a manutenção da capacidade tecnológica da Embraer. As outras duas foram a preservação da soberania nacional e a sustentabilidade financeira da Embraer.

GOVERNO NÃO ABRE MÃO DE ‘GOLDEN SHARE’

Para atender à primeira exigência, a unidade de defesa não foi alvo do acordo e será mantida com a Embraer. Será criada, no entanto, uma segunda joint venture com a Boeing focada no desenvolvimento de novos mercados para produtos e serviços de defesa, em especial o avião militar KC-390. Essa associação ficará sob o guarda-chuva da Embraer. Como resultado, avaliam analistas, a Embraer vai reduzir de tamanho e se tornar mais dependente do governo, uma vez que o desenvolvimento de aviões militares exige forte investimento estatal e têm retorno inferior ao obtido com aviões comerciais.

— A união com a Boeing é relevante, pois a empresa tem mais acesso a crédito privado — disse uma fonte.

A preocupação com a sustentabilidade financeira da Embraer vai nortear o detalhamento do acordo nos próximos meses. Um dos pontos, cruciais, disse essa fonte, é que parte dos US$ 3,8 bilhões a serem desembolsados pela Boeing ficará com os acionistas da brasileira e quanto será reinvestido na empresa. Os principais sócios da Embraer, além do BNDES, são Brandes Investments Partners (14,4%), Mondrian Investments Partners (9,9%) e Blackrock (5%). Segundo o presidente da Embraer, os recursos serão usados para pagar dividendos, reduzir a dívida, fazer novos investimentos e possivelmente recomprar ações.

— Firmar parceria com a maior empresa de aviação do mundo terá imenso benefício para nossas operações, com acesso a mais mercados, redução de custos e ganhos de eficiência — disse Souza e Silva, em teleconferência com analistas.

O governo manterá sua golden share na Embraer, que abrange defesa e aviação executiva, e lhe assegura poder de veto em vários assuntos, desde a mudança de nome até a transferência de controle acionário. Apesar das discussões no Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a possibilidade de o governo abrir mão de suas golden shares — herança da privatização de empresas como Embraer e Vale — o governo não está disposto a revogar seu direito no caso da fabricante de aviões.