O globo, n. 31012, 04/07/2018. Artigos, p. 13

 

Direito ao aborto não é questão de minorias

04/07/2018

 

 

A Constituição brasileira, resultado de intenso processo de construção democrática, pressupõe que as instituições públicas, e a sociedade como um todo, observem os princípios de igualdade, de dignidade da pessoa humana e do respeito pela privacidade. Tanto as leis quanto qualquer ação praticada pela administração pública devem ser regidas por esses valores, e cabe ao Supremo Tribunal Federal zelar pelo cumprimento de tais princípios constitucionais.

No caso específico do direito ao aborto legal e seguro, ainda que se possa alegar que a maior parte da população defenda o modelo atual, que criminaliza a decisão das mulheres de interromper uma gestação indesejada, o STF deve auferir se essa opinião da maioria está ou não violando os preceitos constitucionais. Caso confirmada tal violação, a Corte tem toda a legitimidade para interpretar e garantir o exercício de normas constitucionais vigentes.

A lei em vigor sobre aborto, tal como gravada no Código Penal de 1940, viola direitos fundamentais e, por isso, deve ser corrigida. Segundo dados do Ministério da Saúde, complicações por aborto inseguro estão entre as cinco principais causas de mortalidade materna no país. Em 2015, a Secretaria de Políticas para Mulheres identificou a proibição do aborto como um dos fatores para o país não ter alcançado o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio para redução da mortalidade materna. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que 7,4 milhões de brasileiras já passaram pela experiência de um aborto ilegal e inseguro. Mais de meio milhão de mulheres fazem abortos a cada ano.

Ao menos oito mulheres terão interrompido gestações indesejadas no país somente enquanto você lê este texto. Esses números provam que o aborto não é uma prática ou questão de minorias sociais. A criminalização das mulheres que decidem interromper uma gravidez indesejada gera mais danos à sociedade do que benefícios. Além de violar o direito à vida e à saúde, a lei punitiva atinge desproporcionalmente as mulheres em condições de vulnerabilidade econômica e social: as negras, as pobres, as jovens. Hoje, no Brasil, as ricas abortam sem risco, mas as pobres morrem por efeito da lei penal.

Finalmente, mas não menos importante, o Estado brasileiro é signatário, desde os anos 90, de acordos internacionais que recomendam a prevenção de abortos inseguros, a revisão das leis punitivas e o pleno respeito pelo direito das mulheres à autonomia sexual e reprodutiva, como é o caso dos programas de ação da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), da IV Conferencia Mundial de Mulheres (Pequim, 1995) e do Consenso de Montevidéu (Cepal, 2013).

Ao julgar inconstitucionais os artigos 124 e 125 do Código Penal, foco da ação que busca a descriminalização do aborto (ADPF 442), o Supremo Tribunal Federal tem a oportunidade de fazer com que o Brasil passe a integrar um amplo conjunto de países que reconhecem o direito ao aborto legal e seguro, seja por decisão da mulher, seja para proteger sua saúde física e mental. Estão nessa lista a maioria dos países da Europa, Austrália, Estados Unidos, Canadá, Japão e Nova Zelândia, mas também vários países do chamado Sul Global, como África do Sul, Barbados, Camboja, China, Cuba, Gana, Guiana, Índia, Moçambique, Nepal, Uruguai, Vietnã, o Distrito Federal do México e a vizinha Colômbia onde, em dezembro de 2017, a brasileira Rebeca Mendes pôde interromper legalmente uma gravidez indesejada após ser impedida pelo STF com base em argumentos técnicos jurídicos.

*N. da R.: Roberto DaMatta volta a escrever em agosto Sonia Corrêa é cocordenadora do Observatório de Sexualidade e Política da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, e Juana Kweitel é diretora-executiva da Conectas Di