Correio braziliense, n. 20162, 03/08/2018. Brasil, p. 5

 

Punição ao aborto em discussão no STF

Gabriela Vinhal e Deboah Fortuna

03/08/2018

 

 

SAÚDE PÚBLICA » Supremo realiza hoje e segunda-feira audiência pública para debater a descriminalização do procedimento até a 12ª semana

A solidão acompanhou a estudante de engenharia Ana* desde o momento em que descobriu a gravidez até dois anos depois que fez o aborto. “Eu estava sozinha quando decidi abortar, sozinha durante o procedimento, e sozinha depois, sem que ninguém soubesse tudo o que passei.” Aos 31 anos, ela é apenas mais uma mulher entre as milhares que, sem ver alternativa, interromperam a gestação ilegalmente. Era fevereiro de 2014, quando descobriu que estava grávida pela segunda vez. Mãe solo, indígena, longe da tribo à qual pertence, sabia das dificuldades de criar uma criança sozinha. Optou pelo aborto, não por ser a solução mais fácil — nunca é. Mas por não se sentir amparada para seguir adiante.

A partir de hoje, o Correio inicia uma série de reportagens sobre a descriminalização do aborto e as consequências para a saúde da mulher. O tema começa a ser debatido hoje em audiência pública e segue na segunda-feira, no Supremo Tribunal Federal (STF). Serão ouvidas ONGs pró-vida, juristas, órgãos de saúde, profissionais do meio e também entidades a favor da mudança. Cada um terá 20 minutos para expor dados e opiniões.

O assunto voltará a ser discutido após o pedido de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 442, ajuizado pelo PSol em parceria com o Instituto Anis, que pede a descriminalização até a 12ª semana de gestação. Atualmente, no Brasil, os artigos 124 e 126 do Código Penal criminalizam a prática — exceto em caso de risco de vida da mãe, estupro e feto anencéfalo, que o próprio STF incluiu em 2012. A ministra Rosa Weber é a relatora do caso.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são feitos, anualmente, 56 milhões de abortos no mundo. No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, no ano passado, foram feitos 1.636 casos legais — 44 a menos que em 2016. Em 2015, a pasta registrou 1.667.  O aborto, segundo o governo federal, é a quinta maior causa de morte materna no país. O Sistema de Mortalidade (SIM) registrou 63 casos em decorrência de aborto legal em 2016. No ano anterior, em 2015, foram 69. Já os procedimentos ilegais, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto 2016, estão estimados em 503 mil em 2015. Isso significa que, a cada minuto, uma brasileira decidiu interromper a gestação.

Para a antropóloga e diretora da Anis, Débora Diniz, a convocação das audiências não são “mera coincidência”, pois o momento é importante para qualificar o debate público, confrontar dados e ter acesso às pesquisas — baseadas em estudos científicos. Para Diniz, é uma questão de saúde pública, já que mulheres morrem, todos os dias, por causa do aborto ilegal. Para a especialista, o país está preparado para descriminalizar o procedimento. A preparação, segundo ela, “não pode se dar pela voz intimidatória ou até conservadora, mas tem de se dar pela situação de urgência na qual vive o país. Ameaçamos mulheres de cadeia, mandamos para clínicas clandestinas, e elas correm risco de vida, morrem”.

Para Lenise Garcia, presidente do Movimento Brasil Sem Aborto e professora de biologia da Universidade de Brasília (UnB), o procedimento faz mal “tanto para a nova vida que é eliminada quanto para a vida da mãe, que guarda consequências físicas e psicológicas”. “O bebê também tem direitos.” Sobre o alto número de abortos ilegais realizados por ano, assim como os índices de morte por indução do ato, Garcia assegura que os dados são “exagerados”. “Os números, principalmente na mídia, são os mais variados possíveis. Tudo fake news. Alguns falam 200 mil, mas esse, por exemplo, é mais de o triplo de mulheres em idade fértil que morrem no Brasil”, avaliou. “Qualquer número diferente, não tem fundamento, não tem fonte adequada”, completou.

Abandono

O medo da morte foi um sentimento conhecido por Ana. Ela comprou, ilegalmente, uma caixa de um medicamento abortivo com quatro comprimidos — dois via oral e dois introdutórios. À época, pagou R$ 300 por meio de um farmacêutico, amigo de uma prima — que também já havia feito o aborto antes. Leu na internet as instruções sobre o procedimento, o que aconteceria com o corpo e as possíveis consequências: sangramento, cólicas e dores.

Ana fez o aborto na casa de uma amiga, que estava acompanhada do namorado. Após seguir as instruções, começou o sangramento. As cólicas eram incessantes. Nada parecido com as da gravidez, que já havia experimentado. Até 20 dias depois do procedimento, ela ainda sangrava. Um mês depois, o quadro se normalizou. Decidiu, então, procurar uma ginecologista para saber se teve alguma sequela. Não teve coragem de dizer que havia praticado o abortamento.

“Quando ela me perguntou se eu já tinha abortado, neguei. Fiquei com medo do que poderia fazer comigo. Já tinha visto em reportagens que os médicos, algumas vezes, denunciam. Eu até hoje não contei, em nenhuma consulta”. Fora do consultório, o segredo começou a ser desfeito só dois anos depois. Foi quando se sentiu segura e mais confortável em falar sobre o assunto para amigos próximos. Só não conseguiu se abrir para pessoas da tribo, que são, em maioria, religiosas, e se posicionam contrárias ao aborto.

A estudante conta que nunca teve o desejo de ser mãe. Seguiu a primeira gestação com a promessa de que o pai ajudaria — mas não foi presente na criação. Agora, Ana tem vontade de engravidar, mas com planejamento.

Legislação

O Código Penal prevê no artigo 124 que “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque” será punido com pena de um a três anos de detenção. Já o 126 estabelece que “provocar aborto com o consentimento da gestante” será punido com reclusão de um a quatro anos.