Título: O nome dele é consenso
Autor: Queiroz , Silvio
Fonte: Correio Braziliense, 14/05/2012, Mundo, p. 14

Cessa amanhã na França a breve era do presidente hiperativo, onipresente, uma espécie de Napoleão com pendores aristocráticos, habituado a frequentar os ricos e o jet set de braço dado com uma primeira-dama celebridade. Com Nicolas Sarkozy, não é apenas a direita francesa que deixa o Palácio do Eliseu. O Partido Socialista (PS) volta ao poder, após 17 anos, com um presidente que faz questão de se afirmar como um “homem normal”. Discreto no plano pessoal, François Hollande não é um político que desperte paixões, nem jamais foi visto como candidato a um lugar no panteão do PS ou da esquerda francesa, mas chegou lá em boa parte graças ao atributo que mais se realça em sua vida pública: ele é o homem da síntese, do consenso, do racionalismo pragmático.

O pensamento político do novo presidente tem raízes na melhor tradição dos pensadores iluministas, que moldaram os fundamentos da República e do Estado contemporâneo, sintetizados nos ideais da Revolução Francesa de 1789: liberdade, igualdade e fraternidade, estampadas nas faixas da bandeira tricolor. Em especial, do suíço Jean-Jacques Rousseau, com o conceito do contrato social. O socialismo de Hollande é, antes de tudo, um socialismo do contrato. Em livros como Devoir de vérité (“o dever da verdade”, em tradução livre), de 2006, o então primeiro-secretário do PS delineia uma visão segundo a qual, para transformar a sociedade, o primeiro passo é transformar o exercício do poder. Partilhar decisões com o parlamento, os sindicatos, as autoridades de escalões intermediários, as regiões e os territórios — os cidadãos, enfim.

O Contrato Social de Rousseau está, naturalmente, entre as referências bibliográficas de François Hollande, que nasceu em agosto de 1954 em Rouen, na Alta Normandia, em uma família típica da classe média do pós-guerra. A mãe era assistente social. O pai, médico, herdara o sobrenome de antepassados calvinistas foragidos da Holanda no século 16, em meio aos conflitos religiosos que marcaram a Reforma e a Contrarreforma. Dele, François herdou o pendor pela política, mas não a escolha ideológica: Georges Gustave Hollande chegou a disputar eleições por uma formação de extrema direita.

O jovem François, ao contrário, tomou o rumo da esquerda. E seguiu a trajetória comum à elite governante da França: depois de cursar a Escola de Altos Estudos Comerciais, em Paris, seguiu para a Escola Nacional de Adminstração, a venerada ENA, onde se formaram antecessores como Valérie Giscard D’Estaing e Jacques Chirac. Hollande foi contemporâneo de outros líderes políticos de primeiro plano, como o ex-premiê e ex-chanceler Dominique de Villepin, expoente da direita clássica. E foi também na ENA que conheceu Ségolène Royal, sua companheira sentimental até a separação, em 2008, com quem teve quatro filhos: Thomas, Clémence, Julien e Flora. Depois de graduado, o novo presidente voltou à capital para frequentar outro templo sagrado da academia, o Instituto de Estudos Políticos de Paris, mais conhecido como Sciences Po.

Batismo político

Foi no período de estudante que Hollande debutou na política real, engajado na campanha frustrada do socialista François Mitterrand à presidência, em 1974, quando saiu vencedor o direitista Giscard D’Estaing. Aquele foi o tempo da gauche pluriel (esquerda plural), uma aliança arquitetada por Mitterrand entre o PS e o poderoso Partido Comunista Francês (PCF), ainda na época a principal força da esquerda. O projeto viria a vingar sete anos mais tarde, quando os mesmos candidatos voltaram a se enfrentar e coube ao socialista frustrar a eleição do rival, levando a esquerda pela primeira vez ao poder na 5ª República.

François Hollande, que ingressara no PS em 1979, logo chamou a atenção de Jacques Attali, um dos conselheiros mais próximos de Mitterrand, que o selecionou para disputar uma cadeira na Assembleia Nacional nas legislativas de 1981, em Corrèze, justamente na circunscrição onde a direita gaullista tinha como candidato Jacques Chirac. O jovem socialista foi derrotado, mas conquistaria a vaga sete anos mais tarde, para perdê-la em 1993, na pior derrota sofrida pelo PS desde o pós-guerra. Hollande se tornaria “dono” da cadeira em 1997, o mesmo ano em que foi eleito primeiro-secretário da legenda, sucedendo a Lionel Jospin.

Nos 11 anos em que comandou o PS, até 2008, o atual presidente forjou no próprio perfil a síntese entre o que os franceses chamam de “primeira” e “segunda” esquerda — referência às fases de predomínio do PCF, até 1978, e ao período em que os socialistas se tornaram os adversários da direita clássica. O próprio Hollande admite que poderia ter feito sua formação política nas fileiras comunistas, se tivesse nascido 10 anos mais cedo — no imediato pós-Segunda Guerra, quando o PCF da resistência contra a ocupação nazista, o “partido dos 75 mil fuzilados”, emergia como a força dominante nos sindicatos, tingia de vermelho as periferias de Paris e de outros centros industriais, seduzia intelectuais do porte de Jean-Paul Sartre e Pablo Picasso, o gênio da pintura modernista, exilado na França desde a vitória do generalíssimo Franco na Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

Consenso e síntese são, igualmente, as palavras que definem a atitude do novo titular do Eliseu frente à questão crucial das primeiras horas de seu mandato: a crise que abala os alicerces da União Europeia (UE). François Hollande é tão europeísta quanto a maior parte dos dirigente socialistas da sua geração. E, se tem Mitterrand como primeiro ídolo, seu principal mentor é um dos pais da integração monetária e política do bloco, Jacques Delors, ministro das Finanças nos gabinetes socialistas dos anos 1980 e presidente da Comissão Europeia (CE, braço executivo da UE) de 1985 a 1995.

É com essa bagagem que o novo presidente francês embarca para a Alemanha no mesmo dia da posse para jantar com a chanceler (chefe de governo) Angela Merkel. O cardápio prevê como prato principal a desavença já explícita entre austeridade inflexível à alemã e desenvolvimento, a opção defendida pelo francês no discurso de vitória, na noite de 6 de maio. À mesa, Hollande terá o desafio, mais do que nunca crucial, de exercitar sua disposição para o diálogo racional e a conciliação pragmática.

Em livros como Devoir de vérité, de 2006, Hollande delineia uma visão segundo a qual, para transformar a sociedade, o primeiro passo é transformar o exercício do poder e compartilhar decisões

Nos 11 anos em que comandou o Partido Socialista, até 2008, o atual presidente forjou no próprio perfil a síntese entre o que os franceses chamam de “primeira” e “segunda” esquerda