O globo, n. 31058, 19/08/2018. Artigos, p. 3

 

Uma voz para as vítimas

Carolina Larriera

19/08/2018

 

 

Este ano, no aniversário do atentado contra sua sede em Bagdá, a ONU presta homenagem pela primeira vez às vítimas de ataques terroristas. Quinze anos atrás, em 19 de agosto de 2003, um homem-bomba da célula terrorista de Al-Zarqawi (logo renomeada Estado Islâmico) dirigiu um caminhão de cimento contra o portão dos fundos. Em poucos segundos, uma explosão letal de TNT reduziu à poeira o interior atapetado de nosso prédio, matando 21 e ferindo centenas dos meus colegas. Preso nos escombros estava meu marido, Sergio Vieira de Mello, carioca que também era chefe da ONU no Iraque.

Sergio era a pessoa mais experiente que a Organização poderia perder. Ele havia inaugurado a novidade de “construção de nações” no Kosovo e em Timor-Leste (grande história de sucesso). E também mediou todos os grandes conflitos dos últimos 30 anos.

A vida nas zonas de guerra é inimaginavelmente violenta: Timor em 1999, tal como o Iraque cinco anos depois, era como a Alemanha de 1945. Encontramos os dois países em ruínas: cortinas abaixadas de dia, toque de recolher, restrições de movimento. Se destruir é fácil, construir uma nova administração e serviços é extenuante. Sergio e eu havíamos deixado os nossos Brasil e Argentina com apenas 18 anos, em busca de valores significativos. Foi isso que nos uniu. O amor revelou para Sergio uma nova força e sabedoria, e um desejo profundo de começar de novo. Aos 50 anos, ele sentiu que ganhara o direito a uma vida longe do conflito.

Então, a guerra no Iraque começou. Por duas vezes, Sergio recusou a designação para Bagdá. Ele aquiesceu sob a condição de que eu fosse oficialmente confirmada como parte da equipe. Eu trabalhava em direitos econômicos das mulheres. E, no entanto, Sergio e eu conversávamos sobre tudo. Um aspecto é o problema do terrorismo; outro, suas vítimas. Então, o atentado aconteceu. Eu estava no mesmo prédio, e não consegui salvá-lo. Ele morreu sem mim enquanto eu sobrevivi.

Após o ataque, expus publicamente as falhas de segurança, os problemas na investigação e outras injustiças cometidas. No que ninguém prestou atenção foi que um capítulo definido por um crescente número de vítimas de terrorismo acabava de começar. Recentemente, obtive da Justiça o reconhecimento da nossa união civil no momento de sua morte, atestando que, aos olhos da lei, éramos marido e mulher. Foi um grande avanço, mas ainda hoje centenas de sobreviventes de terrorismo continuam lutando para ter seus direitos reconhecidos. A ONU quer prestar homenagem aos alvos do terrorismo. Mas são vítimas apenas aquelas pessoas que pereceram? Será que não estão deixando de ver que os sobreviventes e suas famílias, muitas vezes marginalizadas devido ao seu status, também são vítimas? O que aprendemos com os erros dos últimos 15 anos? O terror mudou comunidades e seus membros. Por que isso importa? Famílias vitimadas pelo terror devem ser reconhecidas em toda a sua diversidade: ao limitar a definição de família a uma forma só, estamos ignorando a vasta diversidade de formas e direitos familiares que ocorrem nas nações. Negar sua existência é equivalente a ser vitimado pela segunda vez.

Se há um traço que identifica um terrorista é sua insensível falta de empatia pela humanidade básica de suas vítimas — um traço que não é incomum em um ambiente de violência. Ao honrar todas as vítimas do terror, a humanidade deve prevalecer. Reconhecer essa diversidade é a melhor maneira de prestar um justo tributo a todas as vítimas. Especialmente desde que a evidência gritante de que o problema do terrorismo não só persiste, mas também está piorando. Sergio Vieira de Mello, que também era alto comissário para os Direitos Humanos, ao morrer, teria concordado. E assim teriam as mulheres com quem trabalhei em Bagdá. Nós lutamos para garantir a inclusão e o respeito pela diversidade. Isso sempre vai ganhar sobre o ódio e a exclusão - que são as questões que estão no centro e na frente no berço do terror. Esse sempre será o melhor caminho para grandes instituições como a ONU combaterem o terror.