Correio braziliense, n. 20214, 24/09/2018. Opinião, p. 11

 

Os desafios das bactérias multirresistentes

Flávia Rossi

24/09/2018

 

 

O uso de antibióticos na prática clínica é uma importante ferramenta para todas as especialidades médicas, especialmente no caso de pacientes que apresentam o sistema imunológico mais frágil e são mais suscetíveis a infecções, como é o caso daqueles em tratamento para o câncer ou diabete. Por seu lado, a utilização inadequada dessas medicações também está relacionada ao grave problema da resistência bacteriana, considerada uma das principais ameaças à saúde global pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

A resistência bacteriana pode acometer qualquer pessoa, em qualquer idade ou país, ameaçando a possibilidade de tratar infecções graves. Estimativas da OMS apontam que, a partir de 2050, mais de 10 milhões de pessoas morrerão por ano por causa do problema, superando o número de óbitos por câncer, que hoje chega a 8,8 milhões. Atualmente, cerca de 700 mil mortes por ano são atribuídas à resistência bacteriana no mundo, o que reforça a necessidade de ações integradas, envolvendo o ambiente hospitalar e a comunidade.

Nesse cenário, a OMS vem demandando dos países planejamento e execução de planos nacionais que possam conter o problema e otimizar o uso dos antibióticos, considerando as necessidades de cada local. Dados do Sistema Mundial de Vigilância da Resistência aos Antimicrobianos (Glass), que se referem a 22 países e foram divulgados recentemente, indicam que as bactérias resistentes mais frequentemente relatadas produzem enzimas que inativam cefalosporinas e carbapenens, como a Escherichia coli, Klebsiella pneumoniae produtora de carbapenemase (KPC) e os Staphylococcus aureus meticilina resistentes (MRSA).

Infecções por bactérias que expressam KPC refletem um problema importante e até endêmico em diferentes hospitais do Brasil, com altas taxas de mortalidade atribuída, acima de 50%. E, como essas bactérias são resistentes a praticamente todos os antibióticos disponíveis atualmente no país, representam uma grande dificuldade terapêutica. Últimos dados divulgados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mostram que a resistência bacteriana é um problema que vem aumentando no ambiente hospitalar e na comunidade. Na comunidade, o problema está relacionado ao uso inadequado de antibióticos e a condições de saneamento inadequadas.

O efetivo combate à resistência bacteriana deve ser um processo integrado entre os setores de saúde humana, veterinária e agricultura. Protocolos médicos são importantes, mas a população também pode contribuir no combate ao problema seguindo as orientações de indicação e tempo de utilização dos antibióticos, conforme a prescrição médica. O correto diagnóstico clínico e microbiológico também é imperativo para que seja possível racionalizar as indicações desses medicamentos. E o resultado gerado pelo laboratório de microbiologia, em tempo hábil, por meio das culturas e antibiogramas, tem um papel fundamental na adequação e escolha do antibiótico correto.

Existem novas metodologias laboratoriais que permitem a liberação de resultados bastante precoces das culturas e que deveriam ser incorporadas aos serviços públicos de forma mais abrangente. O laboratório Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), por exemplo, adquiriu, recentemente, equipamentos que permitem a identificação de agentes infecciosos bacterianos com tempo bastante reduzido em comparação aos equipamentos tradicionais. Assim, o tempo de identificação de agentes bacterianos e fúngicos pode ser reduzido de cinco dias para apenas 15 minutos.

O uso correto de antibióticos, no tempo adequado, está associado a taxas reduzidas de mortalidade e à diminuição do tempo de hospitalização, o que otimiza recursos e pode salvar vidas. Esse cuidado vale, inclusive, para novos antibióticos que deverão chegar em breve ao Brasil para tratamento de bactérias multirresistentes, entre as quais se destacam a própria KPC e a Pseudomonas aeruginosa, ambas consideradas críticas pela OMS para o desenvolvimento de novas opções terapêuticas.

Nesse cenário, é essencial priorizar investimentos e um planejamento estratégico para que os laboratórios de microbiologia públicos possam ser tecnicamente equipados para proporcionar um diagnóstico rápido e preciso do processo infeccioso. Somente com dados locais, trabalho em equipe multidisciplinar e instituições com qualificação microbiológica é que os médicos poderão adequar a terapia antimicrobiana aos seus pacientes, obtendo os melhores resultados e salvando vidas.