Título: Portas entreabertas
Autor: Tranches, Ricardo
Fonte: Correio Braziliense, 17/05/2012, Mundo, p. 20

Em visita a Brasília, chanceler José Manuel García-Margallo afirma o "compromisso" de resolver a crise entre os dois países por conta da deportação de turistas. Ministro Patriota cobra "tratamento respeitoso" aos cidadãos brasileiros » Renata Tranches

O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antonio Patriota, cobrou ontem do colega espanhol, José Manuel García-Margallo, um tratamento "correto e respeitoso" aos brasileiros que chegam ao país — uma conduta condizente com a amizade e a relação estratégica entre as duas nações. Em visita a Brasília para reforçar os laços bilaterais, num momento em que seu país atravessa uma aguda crise econômica, o chanceler espanhol selou o "compromisso" de seu governo para superar as dificuldades no terreno da imigração. Os ministros concordaram que a situação atual — os dois governos adotaram medidas recíprocas de maior rigor nos procedimentos de ingresso de cidadãos do outro país — precisa ser corrigida. Nenhuma ação concreta foi anunciada, mas os acordos bilaterais que regulam o tema deverão ser revistos durante uma reunião de assessores dos dois países, em 4 de junho, em Madri.

Patriota disse que o Brasil reconhece a realidade do regime de Schengen — tratado que determina a livre-circulação entre os países europeus signatários —, mas ponderou que os brasileiros em viagem pelo continente não encontram em outras nações as mesmas dificuldades com que se deparam ao chegar à Espanha. Visitantes reclamaram reiteradas vezes, na imprensa brasileira, de humilhações e discriminação na imigração espanhola, sob alegação de não cumprirem todos os requisitos para entrada. Muitos tiveram de retornar ao Brasil. "Queremos simplesmente que se aplique o mesmo tratamento, correto e respeitoso (dado pelos outros países europeus)", afirmou Patriota. O ministro espera que sejam "superadas as dificuldades que comoveram, e com razão, a opinião pública brasileira e continuam a nos preocupar".

O chanceler espanhol afirmou que há um "compromisso, não uma promessa" da Espanha para solucionar o problema. "Nossas equipes vão trabalhar a partir de agora para que essas dificuldades sejam resolvidas de forma imediata", declarou Margallo, que chegou ontem a Brasília para uma visita de quatro dias ao país, com escalas também em São Paulo e no Rio de Janeiro. O encontro de ontem no Palácio Itamaraty foi o primeiro contato de alto nível entre os dois governos. Margallo pertence ao gabinete de Mariano Rajoy, presidente do governo (primeiro-ministro) que assumiu em dezembro.

O Brasil passou a aplicar, desde 2 de abril, regras mais rígidas para a entrada de espanhóis, adotadas em nome do princípio diplomático da reciprocidade. A partir dessa data, os dois países decidiram retomar os diálogos, estabelecidos inicialmente em 2008, para buscar uma solução. Uma reunião já foi realizada em Brasília, em abril. A próxima será em Madri, no início de junho, antes da viagem do rei Juan Carlos ao Brasil, em data ainda não definida.

O tema da imigração se impôs nas conversas de alto nível num momento em que a Espanha passa por uma recessão e busca maior aproximação com o Brasil e a América Latina. Com um estoque de investimentos no Brasil superior a US$ 85 bilhões, a nação europeia é a segunda maior investidora no país por esse critério, segundo o Itamaraty. Em 2011, o volume das trocas entre os dois países totalizou US$ 7,97 bilhões, o que representa uma alta de 20% em relação a 2010. O chanceler espanhol destacou que uma das estratégias de seu país para impulsionar a economia seria exportar mais. "O Brasil é um porto seguro", elogiou.

Mercosul Mas não são apenas as relações bilaterais que pesam. A partir de junho, o Brasil assume a presidência rotativa do Mercosul, o que é visto pelos países da União Europeia como uma chance para destravar as negociações sobre um acordo comercial entre os dois blocos. Um avanço nas relações entre as duas regiões seria importante em um contexto no qual Madri passa por tensões com a Bolívia e a Argentina, devido à expropriação de empresas espanholas. Na segunda-feira, após uma reunião de chanceleres da UE, em Bruxelas, Margallo propôs que essas discussões avancem sem a participação da Argentina, que anunciou recentemente a nacionalização da petrolífera YPF, administrada até então pela espanhola Repsol.

"Quem deve analisar se deseja uma negociação, de uma maneira ou de outra, é o Brasil", declarou o ministro, na ocasião. Um dia antes da chegada de Margallo ao Brasil, Patriota recebeu o colega argentino, Héctor Timerman, e foi categórico ao afirmar que a proposta espanhola era "inconcebível". Ao contrário do que fez em Bruxelas, porém, Margallo defendeu ontem que um eventual acordo entre os blocos seja aprovado pelos parlamentos de todos os países-membros. Mas, no caso da YPF, reiterou que a Argentina deve cumprir as normas e pagar um "preço justo" pela desapropriação.

Linha do tempo

Fevereiro de 2008 A Espanha alega que está alojando 100 mil imigrantes brasileiros, 60% deles em situação irregular, e reforça o controle de entrada para cidadãos do Brasil. O número de brasileiros barrados (foto) pela imigração espanhola aumenta 20 vezes — só neste mês, são 452. No ano inteiro, cerca de 2,8 mil brasileiros são retidos nos aeroportos da Espanha.

Junho de 2011 As normas espanholas de imigração são reforçadas, com a imposição de multa de até R$ 230 mil para quem der abrigo, comida e trabalho a estrangeiros sem documentação. A medida é criticada por organizações não governamentais, associações humanitárias e consulados.

Fevereiro de 2012 O Brasil anuncia que adotará as mesmas medidas tomadas pela Espanha, em nome do princípio diplomático da reciprocidade, caso o país ibérico não mude o tratamento dispensado aos turistas brasileiros, que denunciam maus-tratos e condições precárias nos aeroportos ao serem impedidos de entrar na Espanha.

Março de 2012 Dionísia Rosa da Silva, 77 anos, é barrada no Aeroporto de Barajas, em Madri. A idosa havia chegado acompanhada da neta, Amanda de Oliveira, mas foi retida por não ter a carta-convite, documento exigido a brasileiros que chegam à Espanha para se hospedar na casa de familiares ou amigos. Ela ficou três dias no aeroporto até ser repatriada.

Abril de 2012 Entram em vigor as medidas de reciprocidade anunciadas em fevereiro. Para entrar no Brasil, turistas espanhóis passam a ter de apresentar passagem de volta, reserva de hotel ou carta-convite (em caso de hospedagem em residência) e cartão de crédito com a última fatura para comprovar que o turista dispõe de, no mínimo, R$ 170 para gastar por dia de permanência. Nesse período, 31 espanhóis são barrados nos aeroportos brasileiros. A Espanha anuncia que vai "suavizar" as exigências de imigração.