Correio braziliense, n. 20210, 20/09/2018. Brasil, p. 5

 

Futuro ameaçado

Otávio Augusto

20/09/2018

 

 

SOCIEDADE » Estudo da Abrinq afirma que a desigualdade social coloca em risco o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Em cinco estados, 60% da população de até 14 anos está em situação de pobreza, e em quatro, 90% não têm acesso a creche

A desigualdade social pode comprometer o desenvolvimento infantil e perpetuar a miséria. Um estudo realizado pela Fundação Abrinq em todo o Brasil revelou que é grande a possibilidade de crianças que vivem em situação de pobreza se tornarem adultos pobres. A desigualdade de renda é um dos principais desafios nacionais no recorte que abrange a faixa etária de até 14 anos.

Em Alagoas, Maranhão, Ceará, Bahia e Pernambuco, 60% da população nessa faixa etária está em situação de pobreza. Em Rondônia, Amapá, Amazonas e Pará, mais de 90% das crianças estão fora de creches.

Para especialistas, mudar o cenário depende de uma série de investimentos, não só em renda, mas também em infraestrutura, emprego, saúde e educação. Um dado reforça a tese: em 22 estados, mais de 43% da população não tem coleta de esgoto. Em 14 estados, mais de 50% da população vive com renda per capita de até meio salário mínimo.

Os dados da Abrinq reforçam um alerta feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no último mês. Seis em cada 10 crianças e adolescentes vivem em situação de pobreza no Brasil, totalizando 32 milhões de jovens.

As precárias condições de vida dessa parcela da população geram um ciclo vicioso do qual, dificilmente, a criança ou o adolescente pobre consegue escapar. “A pobreza persistente tem a ver não só com a pobreza material, mas também com violência, falta de moradia”, explica Carmen Migueles, especialista em educação da FGV.

Para Migueles, é preciso mudar a forma como as políticas públicas são traçadas e a mentalidade das famílias. “Há uma cultura das famílias mais pobres que preferem que se ganhe algum dinheiro agora do que se preparar para o futuro. É preciso rever as estratégias de educação para diminuir a evasão.”

A professora Christiane Girard Nunes, do Departamento de Sociologia da UnB, acredita que mudar esse cenário exige investimentos intersetoriais. “Tem de haver uma política de distribuição de creche de boa qualidade e de acesso à saúde, à educação e ao emprego. O conjunto desses fatores determina o futuro das crianças”, avalia. Para se ter dimensão do problema, 1.442 creches no Brasil não têm coleta de esgoto e 5.323 não oferecem água filtrada, segundo a Abrinq.

Papel fundamental

A administradora executiva da Fundação, Heloísa Oliveira, destaca que os governos locais têm papel fundamental na mudança. “Temos desafios específicos relacionados com a formação da população e da renda de cada estado, que influenciam a desigualdade social”, diz. “Uma criança pobre tem mais chances de se tornar um adulto pobre e de constituir uma família pobre. É preciso frear essa vulnerabilidade.”

De acordo com ela, o problema não é somente do interior ou de municípios pequenos. “Nas cidades mais ricas, temos pobreza geracional nas favelas e nas periferias”, frisa. Caso de Brasília. O Coeficiente de Gini, divulgado pela Codeplan, mostra o desequilíbrio da renda familiar per capita: a discrepância chega a 18 vezes na comparação entre o Lago Sul (a maior) e a Estrutural (a menor).

Moradora da Estrutural, a dona de casa Tamires Matos Sousa, 26 anos, reside num barraco com o marido, desempregado, e os quatro filhos. A renda mensal não ultrapassa R$ 500. “Nós nos esforçamos para as crianças estudarem para terem um bom futuro, mas passamos muita dificuldade. A pior hora é de manhã, quando pedem pão e leite, e não tem”, conta.

A pequena Érica, 4 anos, enxerga na escola a oportunidade de comer. A merenda oferecida no colégio é um dos atrativos. “Gosto de comer na escola. Meu prato preferido é quando tem carne”, diz.

A pesquisa

» Cinco estados têm mais de 60% da sua população de até 14 anos em situação de pobreza

» Onze estados têm percentual de homicídios de crianças e adolescentes maior do que a média nacional (18,6%).

» Dezessete estados têm taxa de mortalidade infantil acima da média nacional (12,7/1 mil vivos)

» Dezoito estados têm percentual de mães adolescentes acima da média nacional (17,5%).

» Mais de 90% das crianças de Amapá, Amazonas, Rondônia e Pará estão fora das creches

______________________________________________________________________________________________________________________________________________

Os excluídos do saneamento básico

Ingrid Soares

20/09/2018

 

 

Menos de 40% das cidades brasileiras contam com política municipal de saneamento básico. É o que aponta o levantamento divulgado, ontem, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Suplemento de Saneamento da Pesquisa de Informações Básicas Municipais — Munic 2017.

Dos 5.570 municípios, apenas 2.126 (38,2%) têm uma política municipal de saneamento básico. Apesar de baixo, o percentual representa um aumento de 35,4% em comparação com o de 2011. O levantamento mostrou que, em 2017, outros 1.342 municípios (24,1% do total) estavam elaborando um plano de saneamento. No entanto, 3.257 não contam com planejamento de tratamento de água, esgoto e resíduos.

Em 2017, enquanto 63,7% dos municípios do Sul informaram a existência da política de saneamento básico, no Nordeste foram 18,6%. Outro dado mostra que, no mesmo ano, 34,7% dos 5.570 municípios brasileiros relataram casos de endemia ou de epidemia relacionados a condições deficientes de saneamento básico. A dengue foi a doença mais citada, com registro em 1.501 cidades, ou 26,9% do total, seguida da diarreia, com 23,1%.

A desempregada Raquel Pereira da Silva, 36 anos, mora na Estrutural com o marido e os dois filhos num barraco de madeira. Um deles, Pedro Henrique, 18 anos, tem dificuldades neurológicas e motoras. Ele se locomove com a ajuda de uma cadeira de rodas. A casa conta com uma fossa, que desemboca na rua. Por conta da falta de saneamento e asfalto, o esgoto forma uma lama que alaga a rua, dificulta a passagem do menino e invade a casa.

A atendente de loja Renata da Silva, 50 anos, mora há sete anos na Estrutural. Ela também tem uma fossa em casa e reclama que, com a chegada da chuva, a situação piora. “Meus netos moram na casa ao lado e também sofrem. Direto, eles adoecem, hora com diarreia, hora com vômito por conta do contato com a água contaminada”, afirma.

A gerente da Pesquisa de Informações Básicas Municipais do IBGE, Vânia Pacheco, atesta: “Houve avanço no número dos municípios que possuem instrumentos de gestão de política pública de saneamento básico entre 2011 e 2017. O que não dá para saber é se são políticas públicas efetivas e se estão sendo executadas”.

A infectologista Joana D’Arc Gonçalves da Silva ressalta a necessidade de investimento no setor. “As doenças também estão condicionadas a infraestrutura e resíduos. Sem investimento, vão aumentar. No Nordeste, a diarreia é a principal causa de morte de crianças. E é uma doença evitável”, aponta. “O saneamento é mais barato do que os custos de intervenções hospitalares por doenças evitáveis.”