Correio braziliense, n. 20213, 23/09/2018. Economia, p. 8

 

A luta diária de quem ganha salário mínimo

Hamilton Ferrari

23/09/2018

 

 

CONJUNTURA » Piso salarial deve ultrapassar R$ 1 mil em janeiro, mas o aumento de R$ 52 em relação ao valor atual quase nada deve mudar na vida de quem recebe essa remuneração. Sem fazer bicos ou ter ajuda de parentes, é muito difícil garantir a sobrevivência

Pela primeira vez, o salário mínimo deve passar de R$ 1.000. A previsão do governo federal é de que, em 2019, o valor suba para R$ 1.006 — R$ 52 a mais do que a atual quantia. Apesar do fato simbólico, as pessoas que vivem com o piso salarial estão longe de ter uma vida tranquila e, a duras penas, obtêm itens básicos de sobrevivência. Além de trabalhadores da ativa, beneficiários do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) também sofrem com a baixa remuneração.

Na prática, quem recebe o salário mínimo tem duas opções: fazer bicos para complementar a renda ou depender de terceiros. O vendedor aposentado José Domingos Rodrigues, 73 anos, nasceu em Portugal, mas está há 40 anos no Brasil. Trabalhou alguns anos como motorista e se aposentou ganhando o benefício mínimo da Previdência Social, que é equivalente aos R$ 954 do salário mínimo atual. De acordo com ele, a remuneração está muito aquém do razoável. Tanto assim que nunca parou de trabalhar.

Para completar o orçamento, Rodrigues vende sorvetes e doces em Taguatinga. Em casa, são cinco pessoas: ele, a esposa, uma filha e dois netos, que são crianças. Com exceção dos mais novos, todos trabalham para ajudar nas contas do dia a dia. “Mesmo assim, às vezes ainda falta, e, aí, eu recorro a outros dois filhos, que não moram com a gente”, explica Rodrigues. O aluguel do apartamento é de R$ 2.000, mais que dois salários mínimos. O aposentado usa o benefício do INSS para fazer algumas compras, como alimentos e remédios, por exemplo. “É uma quantia que acaba em 10 dias. Está muito abaixo do que eu e minha família precisamos, mas não há o que fazer. A aposentadoria não vai aumentar e, por isso, tenho que trabalhar”, diz.

O vendedor afirma também que não sabe até quando terá condições físicas para trabalhar. “Sei que a aposentadoria é um momento para descansar e curtir a vida. Mas vou levando cada dia. Quem sabe, um dia eu ganho na loteria”, brinca.

A auxiliar de cozinha Ana Luiza Silva de Almeida, 42 anos, sabe do aperto que é receber o salário mínimo. Não tanto por ela, mas pela mãe, que mora na mesma casa, é pensionista e tem mais de 70 anos. A pensão não cobre o custo dos remédios, que os postos de saúde não têm para oferecer. Além disso, a mãe precisa de fraldas geriátricas, que custam caro. “Receber R$ 52 a mais não vai resolver em nada nosso problema. Lá em casa somos eu e meu esposo que trabalhamos, com salário comercial. Temos filhos também. Minha mãe não tem condição de arcar com tudo de que precisa apenas com R$ 954. É impossível”, reclama Ana Luiza.

Desprezível

A secretária Rosilaine Ribeiro, 39, da mesma forma, precisa ajudar a mãe, também pensionista do INSS. De acordo com a trabalhadora, aumentar o benefício previdenciário para R$ 1.006 não vai significar nada. “Ela precisa pagar R$ 500 de aluguel e mais R$ 400 de remédios. É só fazer as contas”, aponta. “O que sobra não dá para fazer mais nada. Obviamente, ela não tem como sobreviver apenas com isso”, completa.

O valor do salário mínimo é definido de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede o comportamento dos preços de uma cesta de produtos consumidos por famílias com renda de até cinco salários mínimos. Segundo os cálculos do governo, o INPC deve fechar o ano com alta de 4,2%. Mas o aumento do piso também levará em conta a variação do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2017, que foi de 1%. Portanto, a correção de R$ 954 para R$ 1.006 será de 5,45%.

Segundo economistas, a correção acima do INPC permite aumento no poder de compra dos trabalhadores, mas não o suficiente para aliviar os compromissos financeiros. A inflação de 2019 ficará em torno de 4,11%, de acordo com o Relatório Focus — que reúne projeções de especialistas. Se a previsão se confirmar, o ganho real será de 1,34 ponto percentual. O economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Fábio Bentes, ressalta que, apesar disso, R$ 1.006 é muito pouco. “Por conta do tamanho da remuneração, que já é pequeno, o aumento será de apenas R$ 52. O impacto na vida das pessoas será muito pequeno e, podemos dizer, até desprezível”, diz.

Contas apertadas

Bentes explica ainda que, caso a inflação suba mais do que o esperado, o ganho real será ainda menor. “É bom lembrar que a meta da inflação do ano que vem é de 4,25%. Ou seja, imaginamos que o Banco Central (BC) vai perseguir a meta. Mas a economia pode sofrer choques e o dólar, se valorizar mais do que o esperado, como ocorreu neste ano. Tudo dependerá do resultado das eleições também. E aí, num cenário adverso, as chances de perder o ganho real do salário mínimo é grande.”

Hélio Zylberstajn, professor da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (USP), lembra, porém, que o aumento do mínimo terá impacto grande na Previdência Social. “O menor benefício da seguridade social tem que ser igual ao salário mínimo, que é recebido por quase metade dos aposentados e pensionistas. Isso eleva o gasto do setor público”, explica. O governo projeta que, a cada R$ 1 de aumento no salário mínimo, o desembolso da Previdência sobe R$ 300 milhões. De acordo com analistas, elevar as despesas públicas é algo bastante sensível no momento.

Em 2018, o Brasil vai completar o quinto ano consecutivo de deficit no orçamento federal, e a estimativa é de que o rombo acabe apenas em 2022. Neste ano, será algo em torno de R$ 141 bilhões, segundo projeções do mercado. O problema está diretamente ligado à elevação dos gastos obrigatórios, como o pagamento de salários de servidores e de benefícios previdenciários — ambos ocupam cerca de 90% do orçamento.

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À espera de vida melhor

23/09/2018

 

 

Alheios à discussão fiscal do país, quem recebe o salário mínimo diz que o único objetivo que têm é ter uma vida melhor. É o caso de Maria de Jesus, 62 anos, que trabalha num restaurante de comida natural. De acordo com ela, o incremento de R$ 52 na remuneração não vai mudar em “nada” a sua cesta de consumo. “Quando aumentar para R$ 1.006, tudo estará custando o dobro”, reclama.

“Queria passear por Imperatriz (Maranhão), mas as passagens aéreas são caríssimas”, lamenta. A funcionária afirma também que toma cinco remédios, que não param de subir de preço. De acordo com ela, o custo total dos medicamentos chega a R$ 200 por mês. “O pior é que não estão disponíveis nas farmácias populares. Tenho dois filhos que me ajudam nas contas”, afirma.

Myrian Lund, planejadora financeira e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), observa que a situação financeira de pessoas que recebem o salário mínimo é extremamente delicada. “O ganho mal basta para a alimentação e ter um local para morar. Por isso, a pessoa precisa ir atrás de bicos e usar algum tipo de habilidade para ser criativo. O momento é complicado para as pessoas conseguirem emprego fixo. É triste, mas tem que correr atrás”, diz a especialista.

Com os altos índices de desemprego, muitas pessoas nem conseguem receber o salário mínimo e se sujeitam a serviços informais. Marlene da Silva Resende, 54 anos, é empregada doméstica e babá. Recebe por volta de R$ 900. À noite, faz faculdade de enfermagem, que custa R$ 700 por mês. Com R$ 200 “livres”, explica que não consegue ficar 30 dias sem deixar que as contas atrasem. Por isso, sábado e domingo faz “bicos de tudo” para ganhar mais dinheiro.

“Minha patroa diz que não pode pagar o salário mínimo porque está sem recursos”, diz Marlene. “Mesmo se recebesse R$ 954, teria de correr atrás do mesmo jeito. Tenho um filho que me ajuda, mas vou acumulando dívidas e tenho que escolher quais vou pagar”, lamenta. “Depois que me formar, espero ter um emprego melhor. Quero ser cuidadora de idosos. Só falta abrir uma portinha para eu entrar”, diz.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 12,8 milhões de pessoas à procura de uma vaga no mercado de trabalho. Nessa situação, muitos se sujeitam a ganhar o salário mínimo, embora tenham qualificação para pleitear remuneração maior. A aposentada Maria Noeli, 74 anos, conta que a filha, de 43 anos, trabalha como telefonista de um call center porque não encontra vaga na área de publicidade, em que é formada. “Ela mora comigo e precisa controlar tudo o que gasta. Não dá para viver sozinha com um salário desse”, ressalta a aposentada. “Aumentar o mínimo para R$ 1.006 não vai mudar nada. É melhor que ela se estruture para depois sair de casa”, afirma Maria.(HF)