O globo, n. 31052, 13/08/2018. País, p. 9

 

'Mil dias de tormenta' traz lufada de ar a ambiente político fétido

Plínio Fraga

13/08/2018

 

 

Livro de Mello Franco reúne crônicas escritas entre o impeachment de Dilma e as acusações de crime contra Temer

Perto de se aposentar como colunista político, o jornalista e escritor norteamericano William Safire (1929-2009) ofereceu aos leitores um conjunto de dicas para ajudá-los a interpretar criticamente a obra de seus iguais. Elencou uma dúzia de regras para orientar a leitura de colunas políticas, em texto publicado em 24 de janeiro de 2005, resumido poucos dias depois por Elio Gaspari na imprensa brasileira. A mais valiosa das dicas dizia que o leitor deveria se questionar sempre sobre qual fora a fonte do texto e a quem ele poderia beneficiar. Essa seria a baliza mais segura para sopesar os argumentos apresentados.

Safire esmiuçou —com ironia elegante —as estratégias, os truques e os atalhos que colunistas políticos escolhem para preencher o espaço que ocupam no latifúndio jornalístico. Cuidado com as citações, com as manifestações de erudição deslocada, com a admissão de pequenos erros como escada para solidificar opiniões sem embasamento, enumerou. Reproduzia um veterano que assegurava que nunca comprometera sua integridade jornalística —exceto por uma anedota reveladora. Alertava que colunistas nunca colocam o mais importante no início do texto. A azeitona está sempre escondida no meio da empada. Daí sugeria que o leitor começasse a leitura de colunas a partir da metade do texto. Desculpava-se, ao fim, por só revelar o mister do ofício depois de se aposentar.

Aos 34 anos, Bernardo Mello Franco é um dos mais jovens e talentosos colunistas políticos brasileiros. Dispensa a cartola e o pincenê que caricaturam os estilos do gênero. Prefere frases curtas, exposições didáticas e ideias claras. Jornalista há quase 15 anos, começou sua carreira como colunista político há apenas quatro na “Folha de S.Paulo”. Transferiu-se este ano para O GLOBO, no qual burilou o estilo que o caracteriza. Escreve cinco vezes por semana, com textos dispostos em seis, sete ou oito parágrafos, no máximo. Busca nos bastidores da política a explicação, o segredo ou a boutade que o noticiário em geral sonegou ao leitor.

No recém-lançado “Mil dias de tormenta —A crise que derrubou Dilma e deixou Temer por um fio” (Objetiva), Mello Franco reúne colunas selecionadas sobre o período traumático recente, todas publicadas na “Folha”. É uma oportunidade para revisitar a crise em reflexão necessária sobre o modo de funcionamento do sistema político brasileiro, sem, no entanto, perder a leveza. Há valor inegável na leitura de crônicas inteligentes sobre os acontecimentos do dia, tendo sido escritas no impulso do momento, sem a vantagem da retrospectiva de que hoje dispomos.

Em uma época cruelmente partidária, esses textos são uma lufada de ar fresco num ambiente fétido. É engraçado relembrar como e quando surgiram termos como “pixuleco”, a bem-humorada e trágica tradução do tesoureiro petista João Vaccari para propina, e entender como a expressão “suruba política” tornou-se centro dos debates em uma comissão da Câmara.

Cronista atento, Mello Franco seleciona e comenta as frases mais marcantes da mal-ajambrada transição entre a presidente “impichada” Dilma Rousseff e seu antigo vice-presidente, Michel Temer. Concentra parte importante dos seus escritos em muitos dos escorregões do elenco de apoio da pesada: Eduardo Cunha, a quem se refere com frequência como correntista suíço, Carlos Marun, Rodrigo Rocha Loures e outros personagens menos abastados.

Meticuloso, o colunista só classificou como estridente o pedido de impeachment de Dilma protocolado pelos advogados Miguel Reale Jr. e Hélio Bicudo depois de contar que o documento continha 28 exclamações e abusava de frases inteiras em caixa alta —ato deseducado para os leitores. Contabilizou que a carta de rompimento escrita por Temer a Dilma tinha 883 palavras, mas nenhuma delas se referia aos graves problemas que o país atravessava. Registrou com humor que houve quem a resumisse como “mimimichel”.

Os mil dias de tormenta vão das articulações iniciais do impeachment de Dilma, passam por sua deposição e se encerram quando Temer foi mantido no cargo, mesmo tendo sido o primeiro presidente acusado de crimes no exercício da função. Mello Franco resume o episódio com primor: “Temer se sagrou vencedor, mas terá que engolir batatas murchas e amassadas. Sua base de apoio encolheu, sua impopularidade bateu recorde e seu governo ficou ainda mais fraco e desmoralizado. Mesmo assim, ele tem que festejar. É melhor continuar no palácio do que antecipar o encontro com os tribunais”.