Título: Proteção contra mísseis divide Otan e Rússia
Autor: Tranches, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 20/05/2012, Mundo, p. 18

A criação de uma barreira para proteger os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte deve ser chancelada em encontro de líderes nos EUA. O governo russo teme que a investida prejudique o seu país Renata Tranches

O avanço do projeto para a instalação de um escudo antimísseis no Leste Europeu, a ser confirmado durante a cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), hoje e amanhã, em Chicago, deve agravar uma já complicada relação entre Moscou e a Aliança Atlântica. Na agenda da reunião, novos desafios como a crise financeira que sacrifica o orçamento dos membros e os eventos relacionados à Primavera Árabe se somam às discussões para a retirada das tropas do Afeganistão e as parcerias consideradas estratégicas para a Otan. Mas as arestas pendentes com a Rússia, ligadas também à entrada de membros da antiga União Soviética na organização, devem esquentar os debates, como ficou evidente em um levantamento sobre a conferência realizado pelo think tank NATO Watch, baseado em Londres e criado para acompanhar e monitorar as ações da instituição.

Ruas próximas ao local em que líderes se reunirão para a cúpula da Otan foram fechadas. Chicago tem sido palco de protestos, principalmente contra a guerra do Afeganistão

Experiente ativista e consultor para assuntos de segurança e controle de armas, o diretor do instituto, Ian Davis, afirmou, em entrevista ao Correio, que seguir adiante com o escudo sem antes fechar um acordo com a Rússia "é um erro". Em um claro sinal das divergências já existentes, o recém-empossado presidente russo, Vladimir Putin, convidado para a reunião, não estará presente e, assim como na cúpula do G8 realizada em Camp David, ontem e na sexta-feira, delegou a tarefa a seu antecessor e primeiro-ministro Dmitri Medvedev. Em 13 de maio, o secretário-geral da Otan, Anders Fogh Rasmussen, afirmou ao jornal norte-americano The Wall Street Journal após a cúpula: "Seguiremos ampliando o sistema (antimíssel) em direção à sua plena capacidade operacional". A "capacidade provisória" deverá ser confirmada pelos 28 líderes ainda em Chicago. O projeto é fruto de um acordo fechado durante a cúpula de Lisboa, em 2010. Elaborado para ocorrer em quatro fases, com a última prevista para 2020, ele deverá cobrir todos os países membros da Otan, na Europa e na América do Norte. O centro de comando será em Ramstein, próximo a Frankfurt, na Alemanha. De lá, serão acompanhadas as atividades de um complexo sistema que envolve radares e mísseis instalados em pontos estratégicos em países como Turquia, Romênia, Polônia, Holanda e Espanha. O objetivo é desviar mísseis direcionados em eventuais ataques contra os países da aliança militar ocidental. Mas Moscou teme que o sistema seja, na verdade, voltado para seu próprio arsenal de dissuasão nuclear.

"Maior desafio"

Em abril, durante um encontro dos ministros de Defesa, Rasmussen já havia manifestado a determinação de dar início ao projeto a partir de Chicago, assegurando que não haveria riscos para Moscou. Mas o ministro das Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov, deixou claro, na ocasião, que o escudo é "o maior desafio para o relacionamento entre a Rússia e a Otan" e reiterou as demandas por "garantias firmes" de segurança. Os russos, segundo Ian Davis, estão particularmente preocupados com a última fase do programa. Nela, será instalado um interceptador de mísseis balísticos intercontinentais, conhecidos como ICBMs. "A dissuasão nuclear da Rússia é predominantemente composta por ICBMs", explicou Davis. O consenso entre as partes parece distante. A Otan tem oferecido uma declaração política de que as defesas de mísseis não serão dirigidas contra a Rússia. O governo russo, porém, quer uma garantia legal desse compromisso. Recentemente, a enviada especial dos Estados Unidos para a Estabilidade Estratégica e de Defesa de Mísseis, Ellen Tauscher, acenou com a possibilidade de garantias "potencialmente mais firmes", mas somente depois de consolidado um acordo de colaboração com a Rússia. "O relacionamento (entre Otan e Rússia) nesse momento não é bom, mas nada que se compare aos tempos de Guerra Fria. De qualquer maneira, seguir com o sistema de defesa sem a Rússia é um erro", reiterou o diretor do NATO Watch.

Nos últimos 30 anos, estima-se que os Estados Unidos tenham gastado cerca de US$ 150 bilhões em tecnologia antimíssel e que pretendem investir outros US$ 44 bilhões nos próximos cinco anos. Mas o escudo antimíssel é também uma ameaça à política do "reset", estabelecida pelo governo Barack Obama para rever as relações com Moscou. Na opinião de Davis, o momento — de profundos cortes nos orçamentos de defesa da Otan — não é o melhor para seguir com o projeto. "Os países precisam reconhecer que o sistema de defesa antimíssel é fruto de um "pensamento antigo", exacerba as divisões no seio da Europa e não representa um exemplo da chamada "defesa inteligente" defendida por Rasmussen", ponderou Davis. "A diplomacia e o engajamento podem aliviar as tensões com a Coreia do Norte e com o Irã (supostas fontes de proliferação de mísseis balísticos) e são uma maneira mais inteligente, mais barata e mais eficaz do que as soluções militares disponíveis."