O globo, n. 31049, 10/08/2018. País, p. 8

 

A cada hora, sete pessoas são mortas no Brasil

Elis Martins

10/08/2018

 

 

 Recorte capturado

Avanço de facções do Sudeste em estados de Norte e Nordeste é apontado como principal razão para crescimento da violência; em um ano, assassinatos contabilizados como feminicídio cresceram 22%

Pelo segundo ano seguido o número de homicídios cresceu no Brasil, ultrapassando a taxa de 30 mortes violentas para cada 100 mil habitantes, enquanto a média mundial é de 7,5. Em 2017, o país registrou 63.880 assassinatos — é como se, a cada hora, sete pessoas fossem mortas de forma intencional no país, uma média de mais de um crime a cada dez minutos.

Na explicação dos pesquisadores do Anuário editado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), cuja 12ª edição foi divulgada ontem, a expansão da guerra entre organizações criminosas do Rio e de São Paulo em busca de mercado e território nos estados das regiões Norte e do Nordeste é a principal causa do crescimento dos assassinatos no país.

O aumento da violência contra a mulher —o crime de feminicídio subiu 21,9% — e a notificação das mortes em ações da polícia, em que o Rio de Janeiro lidera a lista, são outros resultados do estudo.

Os dez estados que tiveram no ano passado a maior taxa de homicídios são dessas duas regiões. O 11º é o Rio de Janeiro, onde foram mortas 40,4 pessoas a cada grupo de 100 mil, aumento de 7,2% em relação ao ano anterior.

A proximidade com países produtores de drogas ajuda explicar o aumento das mortes em estados do Norte e do Nordeste. Ceará e Acre tiveram os maiores crescimentos.

— Precisamos combater o crime organizado com toda energia e garantir a punição dos responsáveis, modernizar o sistema prisional, priorizando que a violência seja o grau máximo a ser punido — afirma Renato Sérgio de Lima, diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. —O Brasil lida com receitas da primeira metade do século passado em segurança. A legislação que regula as polícias é, em sua maioria, anterior à Constituição de 1988. O inquérito que faz com que as polícias civis e militares atuem e registrem um fato criminal é de 1871, do Império. O que os próximos governantes vão dizer sobre isso?

Além do excesso de crimes, o relatório também mostra a dificuldade para resolver os assassinatos: apenas 8% dos homicídios no país são resolvidos.

RIO: A POLÍCIA QUE MAIS MATA

Outra revelação do anuário é o crescimento, em 2017, da violência contra a mulher: ao menos 4.539 mulheres foram vítimas de homicídios, um crescimento de 6,1% em relação a 2016. Ao menos 1.133 casos foram de feminicídios, termo que contabiliza o crime de morte praticado por razões que envolvem o gênero da vítima, como “violência doméstica”e“menosprezo ou discriminação à condição de

mulher”, conforme a lei de 2015 que tipifica o crime. O número de estupros também aumentou. Em 2017 chegou a 60.018, o que significa 8,4% acima do ano anterior.

Pela primeira vez, o anuário tabulou os dados de lesão em mulheres decorrentes de violência doméstica. Foram 606 casos por dia, um total de 221.238 no ano passado. O número deve ser ainda maior, já que nem todos os estados da federação ofereceram esses dados.

Num país em que apenas 8% dos municípios têm delegacias especializadas em crimes contra a mulher, as evidências reforçam a existência de fatores culturais no Brasil, como misoginia e machismo, afirmam os responsáveis pelo levantamento.

— É um dos piores dados que temos em relação a outros países. E com muita subnotificação, já que muitas mulheres têm medo de denunciar e registrar os crimes —diz a socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP. — Muitos não veem o caso como um problema de segurança pública. Mas não se restringe à esfera doméstica nem privada.

Na visão dos pesquisadores, priorizar a ação da polícia no confronto direto com o crime, sem políticas integradas entre os estados e mesmo entre as polícias civis e militares, tem provocado resultados devastadores na área de segurança.

A polícia tem se mostrado mais letal. Só no ano passado foram contabilizados 5.144 mortes decorrentes de intervenção policial, 21% a mais que em 2016. Ao mesmo tempo, 367 policiais morreram em confrontos.

Os números relativos ao Rio são de 2017, o ano que precedeu a intervenção federal na área de segurança iniciada em fevereiro deste ano. O estado lidera o ranking de mortes decorrentes de ações policiais.

— O Rio vive um momento grave, e esse crescimento de mortes decorrentes de intervenção policial provavelmente refletiu na intervenção — diz Samira Bueno. — As UPP deveriam ter sido implementado aos poucos. O número de homicídios diminuiu na capital, mas não nas outras cidades.

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Facções vencem de longe a briga com os estados

Marco Grillo

10/08/2018

 

 

O aprofundamento da crise de segurança no Brasil foi exposto ontem, mais uma vez, com a divulgação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Em 2017, foram 63.880 mortes violentas intencionais, o maior número da série histórica, iniciada em 2006. O recorte por estados revela mais um passo em um caminho seguido desde o início do século XXI: a violência cresce com mais força nos estados do Norte e do Nordeste.

Terceiro estado com menor população no país —só fica à frente de Amapá e Roraima —, o Acre tem a maior taxa por 100 mil habitantes de mortes violentas intencionais, conceito que leva em conta homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais. A tragédia no Acre, vista de maneira relativa, representa o dobro da tragédia nacional. O estado chegou à marca estratosférica de 63,9 mortes violentas por 100 mil habitantes, enquanto o índice no país é de 30,8.

No Ceará, o número cresceu 48% entre 2016 e 2017. Desde 2001, o estado aproximadamente quadruplicou o próprio número anual de vítimas. Em Pernambuco, que chegou a experimentar uma melhora na segurança entre a segunda metade da década passada e a primeira metade desta, a situação voltou a piorar: houve 20% mais mortes violentas em 2017 do que no ano anterior.

Por trás do agravamento da violência, a ausência de políticas públicas voltadas diretamente à resolução da questão, a grave crise financeira de alguns estados e o crescimento vertiginoso das facções criminosas são alguns fatores. Grupos que durante muito tempo ficaram restritos ao Rio e a São Paulo se espalharam pelo país e passaram a dominar rotas internacionais de tráfico. Com mais dinheiro, incrementaram as próprias estruturas e o poderio bélico —há grupos que exigem mensalidade dos “associados”. O crime se expandiu também em direção ao interior, e cenas como a de bandidos portando fuzis deixaram de ser exclusivas das grandes metrópoles. A fragilidade das fronteiras dá outra contribuição.

Em paralelo ao crescimento da violência, as cadeias também passaram a abrigar cada vez mais presidiários. A simples relação entre os fatos dá um nó na tese de que basta prender mais para reduzir a criminalidade, indicando que a saída se dá por outras portas —como a da prevenção, para ficar em um só exemplo.

A equação que reúne crime endinheirado e governos endividados —por culpa dos próprios governantes, é importante ressaltar —, além de outros fatores, resultou na explosão da violência. O assunto deve ser protagonista na campanha eleitoral, inclusive na disputa pela Presidência. Resta esperar que as soluções apresentadas estejam à altura da complexidade do problema.