Correio braziliense, n. 20204, 14/09/2018. Economia, p. 7

 

Do lixo à mesa

Simone Kafruni

14/09/2018

 

 

ESPECIAL » Desperdício anual de alimentos no mundo atinge 1,3 bilhão de toneladas, segundo a FAO. O Brasil reúne características de nações subdesenvolvidas e ricas, com perdas do pós-colheita e escoamento ao consumo. Mais de 5 milhões de pessoas passam fome no país

Enquanto 821 milhões de pessoas passam fome no planeta, o desperdício de alimentos chega a 1,3 bilhão de toneladas por ano. Os dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) são ainda mais alarmantes quando aplicados à projeção do Boston Consulting Group, segundo a qual, se nada for feito para combater as perdas, em 2030, 2,1 bilhões de toneladas vão parar no lixo, a um custo de US$ 1,5 trilhão por ano.

No Brasil, que ostenta o título de um dos maiores produtores agrícolas do mundo, 5,2 milhões de habitantes simplesmente não têm o que comer e a subnutrição é uma mazela comum entre os mais pobres. Ao mesmo tempo, o país ocupa a incômoda posição de aliar características de subdesenvolvimento, com perda de um terço no pós-colheita e no escoamento da safra, aos hábitos de nações ricas, com 28% de desperdício no fim da cadeia e no consumo.

Organismos internacionais apontam que, até 2050, a produção agropecuária mundial teria de aumentar entre 50% e 70% para sustentar o crescimento da população, sob pena de não ser mais possível alimentar a todos. Cabe à sociedade, portanto, reverter esse triste quadro e fazer com que a comida que iria para o lixo volte à mesa, antes que seja tarde. Para traçar o caminho do desperdício e as iniciativas de combate às perdas, o Correio apresenta uma série de matérias que começa hoje.

A infraestrutura logística precária e o baixo índice de capacitação nas lavouras fazem com que as perdas, no Brasil, ocorram desde o campo até a mesa do consumidor, passando pelo transporte, atacado e varejo, explica a pesquisadora do Centro de Estudo de Logística da Fundação Getulio Vargas Luciana Marques Vieira, especialista em cadeias agroalimentares. “O problema não é tecnológico, as ferramentas existem e há como reduzir a perda. O que falta é interesse e participação dos setores alimentares. Temos que engajá-los nessa agenda”, alerta.

Luciana destaca que são necessários estímulo, para que as tecnologias existentes sejam aplicadas, e incentivo à capacitação dos responsáveis pela colheita, transporte e distribuição. “Quando o agricultor vê que o produto está fora do padrão, nem colhe, deixa apodrecer, porque vai ter custo com frete e não vai vender. O alimento acaba no lixo, sendo que tem todas as qualidades nutricionais”, ressalta. Na outra ponta da cadeia, falta conscientização do consumidor, diz a especialista. “Um alimento imperfeito não necessariamente é descartável. Muitas vezes é até mais saudável, porque tem menos pesticida”, afirma.

No meio do caminho, as redes supermercadistas e os restaurantes também precisam se sensibilizar. “O varejo só vai colocar isso na agenda se o consumidor cobrar. Porque, enquanto isso não ocorrer, o comércio embute as perdas no preço de venda”, explica. Lacunas de regulação ainda impedem que os estabelecimentos façam o reaproveitamento ou a doação de alimentos por questões de segurança alimentar. “É preciso mensurar o problema para garantir o engajamento necessário para enfrentá-lo”, completa Luciana.

Metodologia

No país, não há, ainda, uma metodologia capaz de quantificar as perdas e o desperdício de alimentos, mas as provas estão por todos os lugares. Uma olhada no próprio lixo pode revelar o tamanho do problema. “Uma família média perde 20% do que compra em alimentos, porque o faz por impulso, venceu o prazo de validade ou não houve aproveitamento integral”, conta Daniela Leite, idealizadora da Comida Invisível, empresa social que atua com educação e conscientização.

No maior centro de distribuição de alimentos da América Latina, o volume de desperdício impressiona. Anita de Souza Dias Gutierrez, engenheira agrônoma do centro de qualidade da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), explica que, mesmo sendo um local onde a permanência do produto é pequena, são várias perdas. “A maior parte do que entra é comercializada no mesmo dia. Das 10 mil a 12 mil toneladas que circulam diariamente, 100 a 150 toneladas vão para o lixo”, diz. Ela alerta ainda para a perda de qualidade, que desvaloriza o produto. “O que chega mal embalado ou a granel vem machucado ou amadurecido. Pode até ter saído da lavoura com qualidade adequada, mas, com o transporte e o manuseio, perde valor”, afirma.

O mercado atacadista é composto de comerciantes, assinala Anita, portanto, só vai parar no lixo o que é impossível de vender. “Mas há situações em que o produto se desvalorizou tanto que só serve para doação ou para o lixo”, lamenta. As perdas se multiplicam pelas Ceasas do país e não é diferente no Distrito Federal. A Ceasa-DF gera 400 toneladas de resíduos por mês, sendo quase 300 toneladas orgânicos, revela Marcos Aurélio Rigueira Sampaio, engenheiro de alimentos do órgão.

Ainda que o problema seja antigo e com graves implicações sociais, econômicas e ambientais, as iniciativas para combater as perdas e os desperdícios são incipientes e começam a despontar em todos os elos da cadeia. No campo, boas práticas de colheita e manuseio asseguram maior tempo de vida aos alimentos. No transporte e logística, inovação em tecnologias de embalagem garantem a integridade do produto até os centros de distribuição, que coletam sobras e doam para entidades assistenciais. Nos restaurantes e supermercados, gerenciamento e controle cortam o prejuízo em até 40%. E, na casa do consumidor, medidas como o aproveitamento integral dos alimentos, armazenamento correto e reaproveitamento evitam o desperdício.

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Tentativa de solução

14/09/2018

 

 

A falta de dados nacionais para mensurar as perdas e o desperdício de alimentos e os gargalos na legislação emperram a busca por soluções. Para transpor esses obstáculos, foi criado, este ano, um comitê técnico a fim de apurar o tamanho do ralo e traçar uma estratégia intersetorial, com envolvimento de vários órgãos públicos e privados. Entre eles, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que, por sua vez, desenvolve, paralelamente, outro projeto sobre o mesmo tema no âmbito dos Diálogos Setoriais com a União Europeia.

Gustavo Porpino, especialista em comportamento do consumidor da Secretaria de Inovação e Negócios da Embrapa, explica que o programa nacional tem quatro eixos: pesquisa e inovação; comunicação e educação; políticas públicas; e legislação. “O objetivo é fortalecer pesquisas que gerem inovação para evitar perdas, conscientizar todos os atores da cadeia, inclusive o consumidor, e desenvolver políticas públicas que conversem entre si na área de segurança alimentar”, enumera.

Sobre a legislação, Porpino observa que há um gargalo no país. “O primeiro projeto de lei (PL) foi para o Congresso em 1998, há duas décadas, e nunca foi aprovado. Existem 29 propostas que guardam alguma relação com perdas e desperdício. Os PLs foram adensados e hoje restam dois com objetivo de desburocratizar a doação ao retirar a responsabilidade do doador. Mas os trâmites precisam avançar”, defende. Segundo o especialista, na União Europeia, já aprovaram o arcabouço legal e as redes de doações a bancos de alimentos atuam de forma muito mais expressiva. “No Brasil, também há uma questão tributária que emperra as doações das empresas, porque incide pagamento de tributos”, alerta.

A coordenadora-geral de Segurança Alimentar do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), Kathleen Sousa Oliveira Machado, explica que a pasta trabalha para construir uma pesquisa nacional. “Fizemos uma oficina, convidamos vários pesquisadores e vamos estabelecer diretrizes para definir as políticas públicas, com objetivo de alcançar a meta de redução de 50% até 2030”, afirma.

Em 2016, os bancos de alimentos existentes no país formaram a primeira rede brasileira. “São 112 públicos, 93 privados e 25, de outras iniciativas. No ano passado, doaram 62,2 mil toneladas de alimentos para mais de 10 mil entidades, atendendo 4,6 milhões de pessoas”, contabiliza. Apesar da realidade alarmante, Kathleen garante que o horizonte é de crescente melhoria, conscientização e esforço para que os bancos de alimentos ampliem o trabalho de coletar o que iria para o lixo e levar à mesa de quem precisa. (SK)