O globo, n. 31047, 08/08/2018. Sociedade, p. 28

 

O ÚLTIMO DEGRAU DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Helena Borges

Ana Paula Blower

Amanda Almeida

Karla Gamba

08/08/2018

 

 

Combate ao feminicídio

O aniversário de 12 anos da Lei Maria da Penha, ontem, chegou em meio a uma sequência de sete feminicídios —assassinatos motivados por ódio contra a mulher —que tomaram o noticiário nas últimas semanas. A cada cinco dias, uma brasileira perde a vida em um crime desse tipo. Os casos das últimas semanas (veja mais acima) dão nome e sobrenome a esses números. As vítimas são de diferentes estados, muitas delas mortas pelos seus companheiros de relacionamentos amorosos atuais ou já terminados.

O feminicídio é o último degrau de uma escalada que compõe os diferentes tipos de violência doméstica. Essa escalada começa com ameaças e agressões verbais. Segundo a diretora da Divisão de Proteção à Mulher, delegada Gabriela Von Beauvais, as vítimas costumam achar, erradamente, que apenas ao sofrer a violência física é que se pode ir à delegacia.

— Pode começar em uma violência moral, por exemplo, ou na patrimonial, em que o agressor quebra o celular da vítima para não permitir o contato dessa mulher com outras pessoas. No primeiro momento de violência, como um xingamento, deve-se ir à delegacia e pedir medidas protetivas.

Ela explica que, muitas vezes, a própria mulher não percebe que está em situação de vítima. Se o homem forçar uma relação sexual dentro do casamento, por exemplo, configura crime de estupro. Beauvais afirma ainda que a vergonha por sofrer violência doméstica é um dos principais fatores que impedem a vítima de ir à uma delegacia.

DENÚNCIA ANÔNIMA

As denúncias também podem ser feitas de forma anônima, por testemunhas, explica a delegada Sandra Ornellas, titular da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) de Nova Iguaçu. Ela conta que muitas pessoas seguem à risca o ditado de que “roupa suja se lava em casa”, deixando de intervir em discussões de vizinhos. Ornellas afirma ser necessário entender que a falta de atitude abre espaço para esse tipo de crime.

O caso de Tatiane Spitzner, assassinada pelo marido, Luís Felipe Mainvailer, serve de exemplo nesse ponto. Os vizinhos ouviram os gritos de socorro da vítima nos 15 minutos entre sua saída —à força —do elevador social até o momento em que ela despencou da janela do apartamento.

—É importante as pessoas tomarem atitude, principalmente se essa atitude tem o potencial de evitar uma morte. Se o caso se repete, é melhor não esperar o próximo flagrante, pode ser feita denúncia anônima.

A agente afirma que o fato de esses crimes serem cometidos dentro de casa também dificulta sua investigação pela própria estrutura do Direito, porque a maior parte das provas aceitas envolvem situações públicas, como uma filmagem ou uma testemunha ocular.

Ela indica os canais da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (180) e o Disque-Denúncia (2253-1177) como formas de fazer um registro anônimo sobre relacionamentos abusivos. Nesses casos, a Polícia Civil abre um procedimento investigativo e verifica os indícios. Comandado pela Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, o Ligue 180 funciona 24 horas todos os dias, incluindo feriados e fins de semana.

Em um flagrante, é necessário chamar a Polícia Militar, no número 190. Apenas na manhã de ontem, a Polícia Militar do Rio informou ter recebido 58 acionamentos de violência contra a mulher. Segundo a PM, as chamadas estão concentradas na Zona Norte do Rio e na Baixada Fluminense.

MAIS DE 72 MIL LIGAÇÕES

Nos primeiros seis meses de 2018, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência recebeu 72.839 denúncias. Há relatos de violência sexual, homicídio, cárcere privado e outros, entre janeiro e junho deste ano. Os registros foram feitos por meio do Ligue 180 (veja mais abaixo).

Os dados da primeira metade deste ano correspondem a 47% do total registrado em 2017, quando foram feitas 156.839 ligações. Apesar da queda nos registros, o governo destaca que os tipos mais graves de violência foram mais denunciados do que no ano anterior. O relatos de homicídio cresceram

37,3%, e os de violência sexual subiram 16,9%. Os estados de onde mais partem denúncias são São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Na Região Norte, houve o maior crescimento no número de denúncias, em relação a 2017.

‘METER A COLHER’

A secretária nacional de Políticas para Mulheres do Ministério dos Direitos Humanos, Andreza Colatto, destaca que a sociedade como um todo tem um papel importante no enfrentamento à violência contra a mulher.

— Temos os meios de proteção do governo, mas é importante que a sociedade faça seu papel. Em muitos casos, têm terceiros que presenciam as agressões, que filmam, mas não fazem nada.

A secretária chamou de “equivocado” o pensamento de que “em briga de marido e mulher ninguém mete acolher” e afirmou que o cer toé ajudar e acolhera vítima. Segundo Colatto,m ui tas mulheres só criam coragem de denunciar pelo apoio de amigas. A secretária se diz assustada com os números e afirma que o ministério pretende ampliar programas de enfrentamento e combate a esse ti pode crime.

— A violência não termina só no feminicídio, porque em muitos casos há os filhos do casal, que ficam órfãos, tem as famílias. Estamos ampliando programas, tentando reaproximar o Ministério dos Direitos Humanos de outras pastas para combinar ações.

O ministro dos Direitos Humanos, Gustavo Rocha, diz que o objetivo do governo “é possibilitar que todas as mulheres tenham acessoa serviços públicos de qualidade, com preservação da dignidade e garantia de direitos, de forma a reduzir os índices de violência contra as mulheres”.

Também ontem, o Senado aprovou projeto que aumenta apena para o estupro coletivo e torna crime a importunação sexual, a chamada vingança pornográfica e a divulgação de cenas de estupro. A proposta segue agora para a sanção presidencial.

72.839 denúncias foram feitas pelo número 180 entre janeiro e junho deste ano

A Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência recebeu relatos de violência sexual, homicídio e outros

899 é o número de homicídios registrados nesse período

O crescimento em relação ao ano passado é de 37,3%; os relatos de violência sexual também aumentaram: 16,9%

34 mil casos de violência física foram relatados ao Ligue 180 de janeiro a junho

Foram registrados ainda 24.378 casos de violência psicológica, 5.978 de violência sexual e 1.447 de violência patrimonial

9.317 denúncias foram feitas apenas no estado do Rio

São Paulo é o recordista em número de casos: 9.863, só em 2018; em terceiro lugar está Minas Gerais, com 6.499

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Encontrada seminua, com cortes no pescoço

Kimberly Natali Cordeiro, de 23 anos, foi encontrada morta nos fundos de uma empresa em Curitiba, no domingo, após a denúncia de um morador. Kimberly estava seminua e tinha sinais de violência cometidos recentemente, com cortes de faca no pescoço. A Delegacia de Homicídios está investigando o caso.

Facadas no peito e nas costas

A funcionária terceirizada do Ministério dos Direitos Humanos Janaína Romão, de 30 anos, foi assassinada a facadas pelo ex-marido, Stefanno Jesus de Amorim, de 21 anos. Os dois tinham duas filhas. Janaína foi golpeada cinco vezes, no peito e nas costas. O crime ocorreu em 14 de julho em Santa Maria, Distrito Federal.

Violência seguida por ‘queda’ da janela

Era madrugada do dia 22 de julho quando Tatiane Spitzner, de 29 anos, e seu marido, Luís Felipe Mainvailer, 32 anos, chegaram ao prédio onde moravam, em Guarapuava, no Paraná. Após agressões à vítima registradas por câmeras de segurança, Tatiane despencou de uma janela no 4º andar. Mainvailer está preso preventivamente.

Grávida asfixiada na frente do filho

Anderson da Silva, 28 anos, confessou ter matado Simone da Silva de Souza, 25, por causa de ciúmes, na segunda-feira. O pintor se entregou à polícia dizendo-se arrependido por asfixiar Simone, que estava grávida.O assassinato ocorreu na casa da família, no Complexo do Alemão, na frente do filho de três anos do casal.