O globo, n. 31047, 08/08/2018. Economia, p. 29

 

Aborto legal vai so Senado argentino hoje

Janaína Figueiredo

08/08/2018

 

 

Aprovado pela Câmara em junho, projeto que dividiu o país passa por votação que promete ser apertada; após mudança de posição de senadora kirchnerista, expectativa é que vençam os opositores à liberação da prática

Quando o projeto de legalização do aborto teve sinal verde na Câmara argentina, em junho, a expectativa era grande entre seus defensores, embalados por uma primeira vitória histórica (129 votos a favor e 125 contra). As negociações no Senado foram frenéticas, e sempre esteve claro que a Casa representava o maior obstáculo para um projeto que rachou a sociedade e a política locais.

Faltando poucas horas para a votação decisiva, hoje, o cenário parece favorecer os opositores do aborto legal, que nos últimos dias comemoraram a mudança de posição da senadora kirchnerista Silvina Garcia Larraburu, antecipada em sua rede social e confirmada em entrevistas.

Em abril, Silvina apareceu numa foto com a senadora e ex-presidente Cristina Kirchner, divulgada para comunicar que a bancada kirchnerista no Senado respaldaria o projeto. A ex-presidente, que jamais propôs o debate sobre legalização do aborto nos seus dois mandatos (2007-2015), mantém a posição, mas sua aliada alegou motivos religiosos para rever e alterar o seu voto.

MARCHAS PELO PAÍS

O voto do peronismo é essencial aprovar qualquer projeto no Senado. E o peronismo, como a Argentina, está dividido. Deputados como Mayra Mendoza fazem ruidosa campanha a favor da iniciativa, chegando até mesmo a publicar fotos editadas da mítica Evita Perón usando o famoso lenço verde, símbolo da militância pelo aborto legal há mais de 13 anos. Inspiradas nos lenços brancos das Mães da Praça de Maio, as primeiras mulheres que promoveram a legalização do aborto na Argentina mudaram apenas acordo tecidona hora de criar um elemento hoje emblemático de sua luta.

De acordo com cálculos extraoficiais, das 72 cadeiras do Senado argentino, entre 36 e 37 votariam contra o projeto cujo lema é “educação sexual para decidir, métodos anticoncepcionais paranã o abortar e aborto legal paranã o morrer ”. O número de votos favoráveis estaria em torno de 31, mas ninguém se atreve a cravar um resultado final.

Nos últimos dias foram realizadas grandes marchas a favor e contra em Buenos Aires e no interior do país. No sábado passado, foi a vez dos evangélicos, que inundaram o centro da capital com lenços celestes e mensagens pelas “duas vidas”.

— Estamos aqui porque o que está em jogo é muito grave. Não podemos permitir que aprovem uma lei que autoriza um assassinato —disse Teresa Pérez, 38 anos, professora de ensino médio que disse estar espantada com “as coisas que temos ouvido ultimamente na Argentina”.

Os antiaborto estão otimistas e temem, apenas, que o governo do presidente Mauricio Macri, que deu liberdade de ação aseus congressistas e prometeu não veta ruma eventual lei de legalização do aborto, faça alguma manobra de última hora. A Casa Rosada não tem posição oficial, mas analistas especulam um apoio nas sombras do presidente ao projeto, embora sua vice, Gabriela Michetti, quet ambé mé presidente do Senado etemo voto de minerva, seja contra.

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'O assunto deixou de ser tabu no país'

Claudia Piñeiro

Janaína Figueiredo

08/08/2018

 

 

Algumas mulheres argentinas se destacaram nos debates sobre o projeto de legalização do aborto, no Congresso e na mídia. Uma delas foi a escritora Claudia Piñeiro, autora de romances famosos que estão entre os livros mais lidos em seu país, e hoje uma das militantes mais aplaudidas pelos defensores do aborto legal.

A senhora virou um símbolo a favor da legalização. Por que seus discursos tiveram tanta repercussão?

Acho que, no meu caso, consegui apresentar um ponto de vista que desmontou os discursos manipuladores sobre o aborto. Os que falam em mulheres assassinas, em matar bebês. Isso foi derrubado. Temos que falar com clareza. Não são mães matando filhos, são mulheres grávidas de poucas semanas que decidem interromper uma gravidez indesejada. Não são vidas que morrem, ou bebês assassinados, são embriões que não avançam.

Qual é a maior manipulação dos que se opõem à legalização do aborto?

Chegaram a falar em genocídio, ofendendo as vítimas dos verdadeiros genocídios. Isso faz com que muitas pessoas se sintam culpadas, sintam que realmente estão matando uma vida. Não, estamos falando de embriões, não de bebês, e de mulheres que têm o direito de decidir sobre suas vidas. São discursos que vêm da religião, e a fé muitas vezes não entende de razões. Mas, quando aprovaram a lei sobre tratamentos de fertilização assistida, ninguém dizia nada sobre os embriões que são descartados, e por quê? Sobre a vida: sim, ela existe, mas a sociedade chega a acordos sobre outra vida que precisa estar acima dessa situação.

A Argentina estava preparada para esse debate?

Estava mais do que preparada. Veja quantas pessoas estão falando sobre isso. Muitas vieram me contar pela primeira vez que tinham abortado, pessoas próximas, até mesmo familiares. Pessoas que guardaram isso durante anos, por medo, por vergonha. Aconteça o que acontecer, nós vencemos a batalha cultural. O aborto deixou de ser tabu na Argentina. Para nossa sociedade, o aborto já foi legalizado.

Por que ainda existe tanta resistência?

Acho que tem a ver com o papel da mulher. Essas pessoas pensam que a mulher estuprada tem direito de abortar, mas a que tem uma vida sexual plena, não. A essa dizem que, se o método anticoncepcional falhou, assuma as consequências. Eu pergunto: qual é a diferença entre esses dois embriões?

Se o projeto não virar lei, mesmo com a batalha cultural ganha, as clínicas clandestinas continuarão funcionando…

Sim, mas a situação das mulheres mudou. Hoje, elas já estão mais protegidas, até pelo simples fato de poder falar sem medo.