Título: Ocacidade institucional
Autor: Levy, Sylvain
Fonte: Correio Braziliense, 21/05/2012, Opiniao, p. 11
O Conselho Federal de Medicina publicou uma pesquisa sobre demografia médica que evidencia dois aspectos: o primeiro é que a tradicional denominação de médico sanitarista — aliás, título a mim conferido pelo CRM-DF em 1986, foi substituída, passando a ser designada como especialista em medicina preventiva e social. Em segundo lugar pode ser constatado o pequeno número desses especialistas: 942.
A grande probabilidade é que a maioria deles esteja concentrada nos municípios das capitais, prestando serviços às secretarias de Saúde dos estados ou dessas cidades, o que relega os demais municípios brasileiros (mais de 5.500) a uma estiagem de médicos com treinamento específico em saúde pública.
Esses dois fatos permitem refletir sobre a obsolescência dessa especialidade, tanto em sua importância conceitual (até como denominação a medicina de saúde pública desapareceu) como em sua utilização na prática sanitária. Parece que o acesso a informações pela internet e a disponibilidade de instrumentos estatísticos tem o condão de transformar qualquer técnico em epidemiologista ou sanitarista. A maior responsabilidade por esse estado de coisas deve ser atribuída ao governo federal, em função de três decisões: ao realizar apenas um concurso para a carreira de sanitarista do Ministério da Saúde (MS), no longínquo ano de 1978, há mais de 30 anos, portanto, o governo federal eliminou um importante estímulo à formação e profissionalização desses técnicos; b) ao não incluir a carreira de sanitarista no rol das carreiras típicas de Estado, retirou qualquer estímulo de procura dos especialistas em saúde pública (sob qualquer nome escolhido) pelo serviço público e, como na iniciativa privada empregos para a categoria são escassos ou inexistentes, a empregabilidade foi definhando — por um princípio básico da lei da oferta e da procura, onde não há oferta não haverá procura e vice-versa; e c) ao extinguir a Sucam e a Fundação Sesp, no governo Collor, e instituir um novo órgão e não lhe ter dado tempo, instrumentos e condições de operação digna e consequente, contribuiu não só para a desarticulação da carreira de saúde pública na esfera federal, como, principalmente, destruiu uma estrutura de trabalho secular (desde Oswaldo Cruz) ali existente.
Então, numa terra que já produziu Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Noel Nutels, Marcolino Candau, Bichat Rodrigues, Samuel Pessoa, Edmundo Juarez, Sérgio Arouca e David Capistrano, entre tantos outros, menos de mil especialistas, hoje, defendem essas bandeiras. Isso chegou ao ponto de o Ministério da Saúde não dispor atualmente em seus quadros, nem nos da Fundação Nacional de Saúde, de nenhum médico sanitarista (ou especialista em saúde pública ou como preferirem), pois a derradeira médica sanitarista desses quadros se aposentou em 2011.
A ausência de especialistas, integrantes da carreira de saúde pública no Ministério da Saúde e na Fundação Nacional de Saúde, deve ser associada ao crescimento dos contratos de terceirização de serviços e de consultores de organismos internacionais, ambos isentando o governo federal de garantir direitos trabalhistas. Como exemplo dessa inversão de valores pode ser citada a Secretaria de Ciência e Tecnologia do MS, onde mais de 90% da força de trabalho não é concursada, ou seja, não é servidora pública. Essa situação se reproduz em vários órgãos desse ministério.
As dificuldades para apropriação e consolidação dos conhecimentos produzidos por esses trabalhadores por parte da instituição, a ausência de compromisso de muitos desses contratados com o ideário institucional e os problemas com o controle da produção e da frequência desses trabalhadores são fatores conhecidos pelos órgãos de recursos humanos e provocam uma autêntica ocacidade institucional, em que uma casca vistosa esconde um vazio de conhecimentos, de experiências e de memórias.
O Ministério da Saúde reconhece o problema, tanto que pleiteia a abertura de concurso público para 700 cargos, porém, não de especialistas em saúde pública, mas de gestores de políticas sociais, o que significa a permissão para a mobilidade entre órgãos de governo (de um ministério para outro), a perpetuação da ocacidade institucional e praticamente uma pá de cal na carreira de sanitarista.
Ao elencar esses fatos e considerações, duas perguntas continuam sem respostas: qual a razão para esse tratamento discriminatório contra uma carreira e uma profissão — a de sanitarista —, e qual a vantagem de fazê-la desaparecer, como bem o demonstra o relatado.