Correio braziliense, n. 20203, 13/09/2018. Mundo, p. 12

 

Intimação aos bispos

Jorge Vasconcellos

13/09/2018

 

 

VATICANO » O papa Francisco convoca todos os presidentes de conferências episcopais para uma reunião extraordinária, em fevereiro próximo. Na agenda, a discussão de medidas para coibir o abuso de menores por sacerdotes

Em meio às sucessivas revelações de crimes de pedofilia cometidos por sacerdotes católicos nos Estados Unidos, no Chile, na Austrália e na Irlanda, o papa Francisco, recentemente acusado de acobertamento por um ex-embaixador da Santa Sé, tomou uma decisão sem precedentes. Convocou os presidentes das conferências episcopais de todo o mundo para um encontro no Vaticano, entre 21 e 24 de fevereiro de 2019, com o objetivo de abordar a “proteção de menores” contra os abusos sexuais. O anúncio coincidiu com a antecipação, pela imprensa alemã, de um levantamento feito para a Conferência dos Bispos que revela o envolvimento de padres e outros clérigos em abusos praticados contra ao menos 3.677 menores de idade, entre 1946 e 2014.

A reunião extraordinária com os bispos foi anunciada por um comunicado do C9, um conselho formado por nove cardeais que assessoram o pontífice na reforma do Vaticano. A decisão veio a público pouco menos de três semanas depois de o arcebispo Carlo Maria Vigano, ex-embaixador da Santa Sé em Washington, divulgar uma carta na qual pede a renúncia de Francisco, a quem acusa de proteger o cardeal americano Theodore McCarrick, apontado como abusador de seminaristas e clérigos. Ex-arcebispo da capital dos EUA, ele cumpriu suspensão e teve o próprio pedido de renúncia aceito pelo papa em julho.

As repercussões do caso McCarrick serão discutidas hoje, no Vaticano, durante reunião entre o papa e líderes da Igreja americana. O encontro foi pedido pelo cardeal Daniel DiNardo, presidente da Conferência de Bispos Católicos dos Estados Unidos (USCCB), logo após a divulgação da carta de Vigano com acusações ao pontífice. O Vaticano informou, em comunicado, que Francisco se reunirá com DiNardo, com o cardeal de Boston, Sean Patrick O’Malley, e com mais duas autoridades da USCCB.

A Igreja Católica nos EUA foi abalada pela divulgação, em agosto, de um extenso relatório do grande júri da Pensilvânia. O documento revela que 301 padres do estado abusaram sexualmente de pelo menos mil menores, durante os últimos 70 anos. O mesmo informa afirma que a Santa Sé sabia sobre alguns desses casos desde 1963 e se mostrou tolerante, mas é impossível saber se tinha conhecimento de todos os detalhes. A palavra “Vaticano” aparece 45 vezes no documento, que expõe uma máquina de silêncio e acobertamento dos crimes cometidos por sacerdotes.

A Congregação para a Doutrina da Fé, o órgão da Igreja encarregado de defender a ortodoxia doutrinária, é mencionada 14 vezes, enquanto a Santa Sé tem 11 referências. A partir da leitura do documento de 1.356 páginas, é possível inferir que Roma foi informada diversas vezes tanto dos abusos sexuais como do fato de que a Igreja americana estava encobrindo padres pedófilos. Outros estados dos EUA realizam investigações semelhantes, após o escândalo da Pensilvânia.

“Com vergonha e arrependimento, assumimos, como comunidade eclesial, que não soubemos estar onde tínhamos de estar, que não agimos a tempo reconhecendo a magnitude e a gravidade do dano que estava sendo causado em tantas vidas”, assinalou o pontífice, em uma carta aberta, quatro dias após a revelação dos abusos cometidos na Pensilvânia.

Para Francisco, segundo a carta, os escândalos de pedofilia no seio da Igreja Católica nos EUA, cometidos na maior parte antes do ano 2000, são um “crime que causa profundas feridas de dor e impotência” nas vítimas, nas suas famílias e “em toda a comunidade, incluindo crentes e não crentes”.

Vítimas e grupos de apoio pressionam há anos o governo americano para que realize uma investigação nacional sobre abusos dentro da Igreja Católica, assim como foi feito na Austrália. Lá, uma comissão especial passou quatro anos examinando acusações e casos de pedofilia em instituições religiosas e civis. No Chile, 167 integrantes da Igreja são investigados como autores ou cúmplices de abusos contra menores e adultos. Esses crimes se estenderam por quase seis décadas.

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Alemanha examina escândalo

13/09/2018

 

 

A Conferência Episcopal Alemã, que se reúne no próximo dia 25 em Fulda, será informada pelo seu presidente, o cardeal Reinhard Marx, sobre o relatório final de um estudo lançado em 2014 para investigar o abuso sexual de menores, com a comprovação de ao menos 3.667 vítimas entre 1946 e 2014 — na maioria, meninos com menos de 13 anos. O informe, consultado pelos semanários Der Spiegel e Die Zeit, lista 1.670 clérigos acusados de pedofilia e acusa a hierarquia católica de encobrir o escândalo ao longo das décadas.

Em três anos e meio de trabalho, um grupo de pesquisadores das Universidades de Mannheim, Heidelberg e Giessen examinou 38 mil dossiês e manuscritos de 27 dioceses alemãs. Cópias dos documentos foram transmitidas pela Igreja alemã aos estudiosos, que não tiveram acesso direto aos arquivos. O texto final conclui que os responsáveis “destruíram ou manipularam” inúmeros registros relacionados aos suspeitos, enquanto as autoridades eclesiásticas “minimizaram a extensão e a gravidade” dos acontecimentos.

Segundo o relatório, os padres acusados eram frequentemente transferidos, sem que os fiéis das dioceses às quais se destinavam fossem avisados do perigo potencial que eles párocos representavam para as crianças. No total, apenas um terço dos suspeitos enfrentou julgamentos de acordo com a lei canônica. As sanções, quando aplicadas, foram mínimas, sustentam os autores do relatório.

Nos últimos anos, a Igreja Católica na Alemanha, como em todas as partes do mundo, foi abalada pelas revelações do abuso sexual. Uma investigação divulgada em 2017 revelou que pelo menos 547 meninos do coro católico de Regensburg, na Baviera, foram vítimas de brutalidade entre 1945 e 1992. A cidade é sede de uma conceituada universidade que teve o cardeal Joseph Ratzinger — hoje o papa emérito Bento XVI — como vice-reitor e catedrático de teologia. A Baviera é o estado com maior presença católica na Alemanha, onde predomina o cristianismo protestante.

A Igreja alemã afirmou sentir “vergonha” depois da antecipação do conteúdo do relatório, que será formalmente apresentado na reunião de Fulda, dentro de duas semanas. “Estamos cientes da extensão dos abusos sexuais que foram apontados pelos resultados do estudo”, declarou o bispo Stephan Ackerman, em  comunicado emitido em nome da Conferência Episcopal.

O texto afirma que o estudo iniciado há quatro anos tem como objetivo trazer “mais clareza e transparência” sobre o que classificou como uma “página obscura da história da Igreja”. Ackerman condenou, porém, o vazamento do conteúdo do relatório para a imprensa antes da apresentação formal aos bispos pelo cardeal Marx. “Os membros da conferência não foram informados sobre a totalidade do estudo”, ponderou o porta-voz do episcopado, que considerou a divulgação antecipada do teor do estudo “um duro golpe para as vítimas de abusos sexuais” e informou a abertura para elas de um número de telefone para apoio.

3.667

Total de vítimas de abuso citado no relatório feito para a Igreja alemã. O estudo menciona 1.670 clérigos como autores