Correio braziliense, n. 20216, 26/09/2018. Mundo, p. 12

 

Ataque à globalização

Rodrigo Craveiro

26/09/2018

 

 

DIPLOMACIA » Em discurso na ONU, Trump abraça patriotismo, ameaça Irã e Venezuela, menospreza organismos multilaterais e provoca risos de líderes

Donald Trump acabava de começar, com atraso, o pronunciamento na 73ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) quando foi interrompido por risos. Era uma reação dos demais líderes e comitivas a um autoelogio feito pelo presidente norte-americano. “Em menos de dois anos, meu governo cumpriu mais do que qualquer outra administração na história de nosso país”, disse o republicano, em Nova York. “É tão verdade”, acrescentou, também com uma risada. “Não esperava essa reação, mas está bem.” O tom ameno do discurso deu lugar a uma defesa veemente da Pax Americana — a ideologia do “America first” (“A América em primeiro lugar”) apregoada durante a campanha e a posse — e a ataques contra o Irã, a Venezuela, a globalização e as instituições multilaterais. “Os EUA são uma nação mais forte, mais segura e mais rica do que quando assumi, menos de dois anos atrás. Nós nos levantamos pela América e pelo povo americano”, declarou Trump. “A América é governada por americanos. Nós rejeitamos a ideologia do globalismo, e abraçamos a doutrina do patriotismo.”

O republicano escalou a retórica contra o Irã, a quem chamou de “ditadura corrupta”. “Os líderes do Irã semeam caos, morte e  destruição. Eles não respeitam seus vizinhos ou fronteiras, ou os direitos de soberania das nações”, disparou. “Não podemos permitir que o maior patrocinador do terrorismo no mundo possua as mais perigosas armas do planeta. Não podemos permitir a um regime que entoa ‘Morte à América’ e que ameaça Israel com a aniquilação possuir meios de enviar uma ogiva nuclear a qualquer cidade sobre a Terra. (…) Pedimos a todas as nações que isolem o regime do Irã”, emendou. Em seu discurso, o presidente iraniano, Hassan Rouhani, acusou a Casa Branca de arquitetar um golpe, advertiu que a segurança internacional não pode ser o “brinquedo da política interna americana” e relacionou Trump à “fraqueza de intelecto”. O abraço ao isolacionismo e a menção ao Irã provocaram a reação contrária de Emmanuel Macron, presidente da França, aliado histórico dos Estados Unidos.

Em mais um exemplo de negação do multilateralismo, Trump lembrou que os EUA se retiraram do Conselho de Direitos Humanos da ONU até que “uma reforma real” ocorra. “Por motivos similares, os EUA não fornecerão apoio em reconhecimento ao Tribunal Penal Internacional (TPI). No que diz respeito à América, o TPI não tem jurisdição, legitimidade e autoridade. (…) Jamais renderemos a soberania da América a uma burocracia global não eleita e incompreensível”, prometeu. A crise política e humanitária na Venezuela também foi abordada pelo magnata. “Nós estamos testemunhando uma tragédia humana na Venezuela. (…) Não há muito tempo, a Venezuela era um dos países mais ricos do mundo. O socialismo levou à falência a nação rica em petróleo e conduziu seu povo à pobreza abjeta.”

Constrangimento

Diretor de engajamento global da Casa Branca durante o governo do democrata Barack Obama e professor de gerenciamento de crises da Georgetown University, Brett Plitt Bruen disse que os EUA nunca se isolaram tanto. “Eu não esperava que líderes mundiais rissem de maneira audível e fizessem do presidente americano uma piada. Foi um constrangimento nacional”, admitiu ao Correio. Segundo ele, Trump apresentou uma “perigosa defesa do patriotismo em uma instituição criada para proteger o mundo contra danos infligidos pelos ultranacionalistas”. “Após duas guerras mundiais, nossos líderes perceberam a necessidade de estabelecer limites e de forjar maior cooperação. Isso criou paz e prosperidade por mais de 75 anos. Trump propôs abandonar as advertências da história e abraçar um futuro distópico.”

O ex-diplomata vê o republicano praticamente sozinho em relação ao tema do Irã. “É o mais evidente exemplo de que a América reduziu a influência sob sua liderança. Enquanto ele continua com ameaças, o resto do mundo segue comprometido em preservar um acordo que removeu as armas nucleares de uma situação volátil”, frisou Bruen, referindo-se ao pacto firmado em 2015 entre Teerã, Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e Alemanha. Trump anunciou a retirada do acordo em maio passado.

Richard Gowan, especialista do Centro para Pesquisa Política da Universidade das Nações Unidas (em Nova York), não ficou surpreso com o pronunciamento de Trump. “O presidente claramente gosta de quebrar tabus da diplomacia da ONU. Ironicamente, vários governantes não democráticos terão desfrutado do discurso, com ênfase na soberania e em seus ataques a organismos como o Conselho de Direitos Humanos e o Tribunal Penal Internacional”, lamentou. De acordo com ele,  Trump também buscou atingir o público doméstico, ao citar a migração e o comércio. Em meio a grave crise interna e criticado por avalizar a indicação do juiz Brett Kavanaugh à Suprema Corte dos EUA, apesar de duas denúncias de abuso sexual, Trump procurou enfatizar as conquistas em casa. “O discurso foi surpreendentemente chato. Ele estava desanimado e tinha pouco de novo para dizer. Outros líderes riram dele. Não foi um Trump clássico.”

Eu acho...

“Trump foi menos agressivo em relação ao Irã do que alguns analistas esperavam. Ele repetiu ataques anteriores a Teerã, sem fazer quaisquer novas ameaças. Pelos padrões de Trump, isso foi uma manobra bem cautelosa. Ele não pareceu muito animado com essa parte do discurso. Mas ele levantará o tema do Irã novamente amanhã (hoje), no Conselho de Segurança, e pode ser onde os fogos de artifício ocorrerão.”

Richard Gowan, especialista em política pelo Centro para Pesquisa Política da Universidade das Nações Unidas (em Nova York)

Na tribuna

Recado de Teerã...

O presidente iraniano, Hassan Rouhani, acusou Donald Trump de desejar um golpe em Teerã e criticou o viés unilateralista da Casa Branca. “Confrontar o multilateralismo não é um sinal de força. Pelo contrário, é um sintoma de fraqueza do intelecto. Ele revela uma inabilidade em compreender um mundo complexo e interconectado”, afirmou. Rouhani considerou “infeliz” o fato de o planeta testemunhar governantes “que pensam que podem garantir os seus melhores interesses fomentando o extremismo e o nacionalismo, por meio de tendências xenofóbicas que se assemelham ao nazismo”.

...e respaldo da França

Por sua vez, o presidente francês, Emmanuel Macron, pediu a resolução da crise iraniana através do “díálogo e do multilateralismo”. “Este caminho do unilateralismo nos leva diretamente à retirada e aos conflitos, ao confronto generalizado de todos contra todos em detrimento de cada um, inclusive do que, em última instância, acredita ser o mais forte”, argumentou, sem mencionar nomes. “O que é que realmente resolverá a situação no Irã e já começou a permitir a sua estabilização? A lei do mais forte? A pressão de um só? Não!”, enfatizou Macron, que criticou o boicote americano ao acordo nuclear de 2015.

Crítica ao caos mundial...

Antes de o presidente brasileiro, Michel Temer, abrir a maior reunião diplomática do mundo, o secretário-geral da ONU, António Guterres, advertiu que a ordem mundial está em “ponto de ruptura” e que a cooperação tem sido cada vez mais difícil. “Hoje, a ordem mundial está ficando cada vez mais caótica, as relações de poder são menos claras”, disse Guterres. “Os valores universais estão se desgastando, os princípios democráticos estão sob um cerco. (…) Hoje, com mudanças no equilíbrio de poder, o risco de confronto pode aumentar”, acrescentou o português.

...e às sanções como armas

Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia, não mencionou diretamente os EUA, mas o destinatário de suas críticas era claro. Ele classificou de inaceitável o uso de sanções econômicas como arma e advocou uma solução política para a guerra civil na Síria. Segundo Erdogan, apenas “uma saída política sustentável e justa” — alcançada em conjunto pela comunidade internacional — será capaz de prevenir uma catástrofe humanitária. O líder turco também disse que o Conselho de Segurança da ONU tem permanecido “ocioso” ante a opressão em Mianmar, na Palestina e na Bósnia.

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Republicano sugere queda de Maduro

26/09/2018

 

 

Além de anunciar sanções à cúpula do poder na Venezuela (leia ao lado), o governo norte-americano pareceu acenar, ontem, com o aval a um eventual golpe militar contra Nicolás Maduro. “É um regime que, francamente, poderia ser derrubado muito facilmente pelos militares, se os militares decidirem fazer isso”, declarou o presidente norte-americano, Donald Trump, durante a primeira reunião com o colega colombiano Iván Duque. Ele frisou que o governo de Maduro “é perigoso para a segurança de seu povo”. “Já viram como os militares se dispersaram quando escutaram uma bomba explodir sobre suas cabeças. Esses militares estavam se resguardando. Isso não é bom”, alertou Trump, em referência ao suposto atentado sofrido por Maduro em 4 de agosto, enquanto assistia a uma parada militar em Caracas.

Um dos principais líderes da oposição venezuelana no exílio, o ex-prefeito de Caracas e preso político foragido Antonio Ledezma disse ao Correio que Trump apelou às Forças Armadas da Venezuela para recuperar o Estado de direito, “violentado pela ditadura”. “Não estamos falando de um movimento golpista, mas da atuação das forças armadas para restabelecer o sistema judicial e de governabilidade, a fim de que as instituições autônomas recobram o seu espírito democrático”, comentou, por telefone. “No meio militar, há gente disposta a recuperar a democracia. Muitos oficiais se mostraram rebeldes e, hoje, estão pagando pelas consequências dessa coragem. Há dezenas de militares presos, e muitos são submetidos a uma perseguição por parte de grupos da inteligência cubana que operam na Venezuela.”

Corte de Haia

Durante a abertura da Assembleia Geral da ONU, outros líderes abordaram a crise humanitária provocada pelo regime de Maduro. Em um discurso de 11 minutos, o presidente argentino, Mauricio Macri, explicou que, “ante a gravidade da situação dos direitos humanos”, Argentina, Colômbia, Chile, Peru e Paraguai decidiram pedir ao Tribunal Penal Internacional (em Haia, Holanda) que considere “os crimes de lesa humanidade da ditadura venezuelana”.

O presidente equatoriano, Lenín Moreno, defendeu uma “ação continental” pela Venezuela e acusou implicitamente Maduro por causar “a maior diáspora da história” da América. O brasileiro Michel Temer, por sua vez, sublinhou a acolhida dos milhares de venezuelanos que chegaram ao Brasil “em busca de condições dignas de vida”. De acordo com as Nações Unidas, pelo menos 1,6 milhão de venezuelanos emigraram para nações vizinhas, nos últimos três anos. (RC)