O globo, n. 31043, 04/08/2018. Sociedade, p. 24

 

ABORTO EM JULGAMENTO

André de Souza

Renata Mariz

04/08/2018

 

 

No primeiro dia de debates no STF, posições médicas e científicas saíram em defesa do direito da mulher de interromper a gravidez de maneira segura e legal; representantes contrários à liberação afirmaram que haverá ‘fila do aborto’ no SUS

No primeiro dia de audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez, posições médicas e científicas dominaram o debate, com defesas do direito de abortar de maneira legal.

Do lado de fora do STF, mulheres organizaram um protesto pró- aborto vestidas como aias da série “Handmaid’s Tale”, em que as personagens são violentadas e utilizadas como “reprodutoras”.

No STF, representantes do Ministério da Saúde, de associações médicas e organizações da sociedade civil apresentaram argumentos que embasarão a decisão dos ministros no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, ajuizada pelo Psol e pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos Gênero (Anis). Os debates continuam na segunda.

Complicações e mortes

A representante do Ministério da Saúde Maria de Fátima Marinho afirmou que abortos inseguros levam “a mais de 250 mil hospitalizações no SUS por ano. Isso gera 15 mil complicações e 200 mortes. Quase uma morte a cada dois dias”.

A posição foi contestada por Raphael Câmara, coordenador da residência médica em ginecologia da UFRJ e representante do Instituto Liberal de SP na audiência. Segundo ele, as 200 mortes contabilizam óbitos por “todo tipo de aborto”, não só os provocados. Ele ainda disse ser incorreta a afirmação que mulheres pobres e negras são as mais afetadas pelo aborto inseguro.

A antropóloga Debora Diniz, do Anis, rechaçou as afirmações. Autora de um dos estudos questionados, a Pesquisa Nacional de Aborto, ela apresentou uma metodologia que  constatou que uma em cada cinco mulheres de até 40 anos já fez ao menos um aborto inseguro, o que projeta uma estimativa de 503 mil casos ao ano. Ela citou o perfil mais comum das mulheres: jovens, das regiões Norte e Nordeste, negras e indígenas.

Procedimentos seguros

Rosires Pereira de Andrade, representante da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), defendeu que os métodos modernos para a realização de abortos são seguros. Mesma posição do ex-ministro da Saúde no governo Lula e membro da Academia Nacional de Medicina José Gomes Temporão, que criticou a proibição da venda no país do medicamento misoprostol. A posição também foi contestada por Câmara. Segundo ele, foram registradas três mortes nos 1.667 abortos legais realizados em 2015.

Liberar reduz casos

Jorge Rezende Filho, da Academia Nacional de Medicina, apresentou dados de países que descriminalizaram o aborto e tiveram redução drástica da prática — como na França, que teve queda de 24% no número de interrupções de gestação. Melania Amorim, do Instituto Paraibano de Pesquisa Joaquim Amorim Neto, ressaltou que ospaísescomlegislaçõesmenos restritivas e assistência adequada têm taxas de abortos baixos, entre 7 e 9 casos por mil mulheres entre 15 e 44 anos. Em locais com normas proibitivas, o índice pode mais que duplicar, como 29 no Paquistão, 27 nas Filipinas e 43 no Quênia.

Câmara também contestou essa informação, afirmando que a descriminalização vai criar a “fila do aborto” nas unidades de saúde e que não há recursos nem médicos dispostos a fazer o procedimento.

Rosemeire Santiago, do Centro de Reestruturação para a Vida(Cervi), que dá apoio a mulheres para continuarem com a gravidez, disse que, quando elas têm apoio, a maioria desiste da ideia.

‘Ser humano indefeso’

Regina Beatriz Tavares da Silva, da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS), alegou não ser possível comparar um “ser humano em gestação” com uma parte do corpo da mulher. Ela também apresentou a imagem de um feto na sexta semana, “onde se pode notar a forma humana e a vida humana”.