Correio braziliense, n. 20202, 12/09/2018. Ciência, p. 14

 

Fome avança com ajuda das mudanças climáticas

12/09/2018

 

 

O retrocesso no combate à fome no mundo tem como uma das principais causas a dificuldade de desacelerar o aquecimento do planeta. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), as mudanças climáticas têm papel-chave no preocupante estado da segurança alimentar e da nutrição do planeta e podem, inclusive, piorar o cenário. “Se os esforços não aumentarem, existe o risco de ficarmos muito distantes da meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável relativa à erradicação da fome até 2030 no mundo”, alerta o documento.

O relatório mostra que a situação está piorando na América do Sul e na maioria das regiões da África. Segundo Dominique Burgeon, diretor de Emergências da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), há uma preocupação com “a deterioração da situação na América do Sul” — onde a prevalência da subalimentação subiu de 4,7% em 2014 para 5% em 2017 — no caso da população mundial, a mudança foi de 10,7% para 10,9% no mesmo período. A grave crise econômica na Venezuela também tem contribuído para esse cenário, ressalta Burgeon.

No caso da América Central,  as atenções se voltam para o corredor seco entre Nicarágua, Guatemala e El Salvador, “onde a probabilidade de um fenômeno climático, como El Niño, com a multiplicação de secas, aumenta a cada dia um pouco mais”. No evento mais grave, entre 2015 e 2016, a região sofreu umas das piores secas dos últimos 10 anos, resultando em reduções significativas na produção agrícola, com perdas estimadas entre 50% e 90% da safra agrícola. Mais de 3,6 milhões de pessoas precisaram de ajuda humanitária, segundo a FAO.

Lavouras afetadas

Como alguns fenômenos extremos climáticos “não podem ser atribuídos” diretamente às mudanças climáticas, o documento evita utilizar o termo. Mas aponta que, entre 1990 e 2016, o calor extremo, as secas, as inundações, as tempestades e outros eventos climáticos do tipo dobraram.  “As mudanças no clima já estão enfraquecendo a produção dos principais cultivos em regiões tropicais e temperadas”, alerta.  “Nos últimos 10 anos, 36% dos países que sofreram um aumento na subalimentação também registraram uma seca”, enfatizou Burgeon.

Atualmente, a crise alimentar mais aguda acontece no Iêmen, um país em guerra e onde 35% da população está subalimentada.  Segundo a ONU, em 2017, 821 milhões de pessoas passavam fome no mundo — eram 804 milhões um ano antes —, quantidade que nos fez retornar aos níveis registrados há uma década. O relatório foi assinado por cinco agências das Nações Unidas: FAO, Organização Mundial da Saúde (OMS), Programa Mundial de Alimentos (PMA), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Fundo Internacional de Desenvolvimento da Agricultura (Ifad).

36%

Porcentagem dos países que sofreram aumento na subalimentação da população e registraram seca nos últimos 10 anos, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura

Só mais dois anos

O mundo tem apenas dois anos para agir contra a mudança climática se quiser evitar “consequências desastrosas”, alertou o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres. “Se não mudarmos de direção até 2020, corremos o risco de cruzar o limite de podermos evitar a mudança climática descontrolada, com consequências desastrosas para os seres humanos e todos os sistemas naturais que nos sustentam”, disse. Guterres ressaltou algumas medidas: “Devemos deter o desmatamento, restaurar os bosques deteriorados e mudar a forma como cultivamos”. O secretário-geral lembrou ainda que o prazo é o mesmo para que os signatários do acordo de Paris 2015 cumpram os compromissos firmados, como a redução das emissões de gases do efeito estufa que garantam aumento de temperatura menor que 2°C até o fim do século.