O globo, n. 31041, 02/08/2018. País, p. 6
'NÃO TENHO DÚVIDA DE QUE A ESQUERDA PRECISA DE AUTOCRÍTICA’
Flávio Tabak
Fernanda Krakovics
02/08/2018
Líder dos sem-teto diz que vai enfrentar ‘privilégios’ taxando fortunas, heranças e lucros
Pré-candidato à Presidência pelo PSOL, Guilherme Boulos, de 36 anos, defende uma política econômica voltada para o combate a “privilégios” e desigualdades. Seus pilares são uma reforma tributária que taxe fortunas, heranças e lucros, além de uma redução das desonerações fiscais a empresas.
Apesar de repetir que o ex-presidente Lula foi condenado sem provas e criticar a Lava-Jato, o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) diz não ter “compromisso com o erro de ninguém”.
Formado em psicanálise, Boulos diz que não só a esquerda, mas o sistema político brasileiro como um todo precisa fazer uma autocrítica para evitar a repetição de erros. E conclui: “O Brasil precisa de um psicanalista”.
O GLOBO entrevistará todos os presidenciáveis.
Por que a esquerda tem quatro pré-candidatos?
Nós temos construído uma unidade na esquerda em defesa da democracia e dos direitos sociais. Agora, existem pontos de diferença. Na esquerda não existe pensamento único, felizmente.
Qual é a diferença do senhor para o PT, Ciro Gomes (PDT) e Manuela D’Ávila (PCdoB)?
A nossa candidatura representa um projeto de enfrentamento a privilégios. Não vamos avançar em direitos sociais no Brasil sem enfrentar a república dos bancos que manda neste país. E não dá para fazer alianças com o campo político que representa o governo Temer, com os partidos do centrão e o MDB.
Como pretende governar sem compor com outros partidos?
A sociedade brasileira está cansada de toma lá, dá cá. Isso não quer dizer que não vamos dialogar com os partidos políticos, com o Congresso. O que não nos dispomos a fazer é troca de cargos por voto, é negociar princípios no balcão. Para que a gente possa mudar o sistema político brasileiro, temos um duplo movimento: a renovação do Congresso e a mobilização da sociedade em torno de causas, e com participação em plebiscitos e referendos.
Essa democracia direta, com plebiscitos, não diminui o papel do Congresso?
O Congresso tem seu papel e o presidente da República também. Nenhum deles tem podersupremo.
Qual seria o primeiro plebiscito, se eleito?
No dia 1º de janeiro de 2019, um plebiscito para revogar os atos desse governo Michel Temer: reforma trabalhista, teto de gastos sociais, entrega do pré-sal para empresas estrangeiras. A autorização da venda da Embraer para a Boeing é de um entreguismo sem tamanho, ameaça 17 mil empregos aqui no Brasil, sem contar a questão da soberania nacional.
O senhor aparece com 1% nas pesquisas. Como pretende crescer?
Essas são as eleições mais imprevisíveis dos últimos 30 anos, é um cenário totalmente aberto. Essa mesma pesquisa diz que 58% não sabem em quem vão votar ou vão votar nulo ou branco. O jogo nem começou.
Mas será que o senhor não está falando só para a militância do PSOL?
Na pré-campanha, a nossa candidatura foi a única que pisou em favela. Não estamos pregando para convertido, não. Quando tivermos oportunidade de fazer isso nos debates de TV, quando o interesse das pessoas se voltar para a campanha, seguramente vai ficar clara a amplitude da nossa candidatura.
Lula disputou quatro vezes e só venceu quando fez a Carta ao Povo Brasileiro. É possível chegar lá sem levar seu discurso para o centro?
A História não se repete. Os desafios colocados hoje não são os mesmos. O sistema da nova República, em que o PT e o Lula atuaram, faliu. Estamos diante de um desafio de refundação democrática no Brasil, estamos diante de uma crise política, econômica, ética. O povo brasileiro está descrente dessa forma de fazer política, não aceita mais esse toma lá, dá cá.
O senhor critica o toma lá, dá cá, mas faz parte da campanha contra a prisão do ex-presidente Lula, cujo governo foi marcado por esse tipo de política. Está no mesmo grupo que o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que também defende o Lula.
Estou no mesmo grupo que o Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz; de Boaventura de Souza Santos; da maior parte dos juristas brasileiros que lutaram contra a ditadura militar. Defender a liberdade do Lula é uma questão democrática, por entender que houve um processo de perseguição política com o objetivo de retirá-lo do processo eleitoral. Em relação aos governos do PT, esse é um dos nossos pontos principais de crítica: não se fez uma necessária reforma política e se governou com quem sempre mandou no Estado brasileiro. Nós não vamos governar com Renan, (José) Sarney, (Romero) Jucá.
O Lula está preso pelo processo do tríplex e ainda há outros, como o do sítio de Atibaia, no qual os indícios contra ele parecem mais numerosos. Como o senhor enxerga essa ação?
Condenação em processo criminal não se faz por convicção nem por atacado, e sim com base em provas. No estado de direito é assim. O Lula foi condenado no processo do tríplex sem nenhuma prova material, apenas delações.
Então, na sua avaliação, Lula não cometeu crime em nenhum momento?
A quem cabe provar se o Lula cometeu crime é o Ministério Público. E até aqui não provou.
A perseguição política de que o senhor fala seria feita pela Operação Lava-Jato?
A Lava-Jato começa com o espírito de combate à corrupção, mas ela toma caminhos de politização e partidarização. O Lula está preso sem nenhuma prova apresentada e Michel Temer, com excesso de provas, está governando o Brasil. O Aécio Neves dizendo que ia matar o primo antes de delatar está fazendo lei no Senado.
A estimativa é que a Lava-Jato recupere R$ 12 bilhões. Daria para construir 63 mil imóveis do Minha Casa Minha Vida. Isso é desprezível?
Não, de forma alguma. Para ficar muito claro: corrupção tem que ser investigada e, havendo prova, as pessoas têm que ser punidas, independentemente da coloração partidária. Não temos compromisso com o erro de ninguém.
Por que o senhor está perto do Lula e do PT, então?
Sou candidato a presidente pelo PSOL. Agora, diferença política não vai fazer a gente conivente com injustiça.
Qual é o seu principal adversário no primeiro turno?
O atraso representado por Jair Bolsonaro e os banqueiros, por Geraldo Alckmin.
A auditoria da dívida pública continua uma bandeira sua?
O enfrentamento aos privilégios e às desigualdades são pontos essenciais. Vamos fazer uma reforma tributária progressiva, com taxação de grandes fortunas, de lucros e dividendos, e de grandes heranças. Vamos enfrentar a Bolsa Empresário. Só este ano são R$ 283 bi de desonerações fiscais a empresas. Vamos cortar parte dessas desonerações. Terceiro, o Bolsa Banqueiro, que são os juros extorsivos da dívida pública. Isso passa por uma política consistente de redução dos juros, reestruturação do perfil da dívida e por uma auditoria para evitar que se repitam problemas em relação à rolagem da dívida pública brasileira. O ajuste fiscal é uma política desastrosa e que não será seguida em nosso governo.
Qual sua avaliação sobre a situação da Nicarágua?
O que está acontecendo na Nicarágua é lamentável. Condenamos de maneira clara essa repressão feita pelo governo. Ao mesmo tempo, há milícias de oposição que também entraram no enfrentamento. Não tem um mocinho na história da Nicarágua.
E na Venezuela, o senhor considera a reeleição de Nicolás Maduro legítima?
Sim, como reconhecem observadores internacionais, inclusive o ex-presidente espanhol (José Luis) Zapatero, que não é suspeito de ser bolivariano.
O senhor é formado em psicanálise. Acha que a esquerda brasileira precisa de um pouco de autocrítica?
Não só a esquerda. Não tenho dúvida de que a esquerda precisa. Todos precisamos. O sistema político precisa de autocrítica, reconhecer o quanto se afastou das pessoas. No caso da esquerda brasileira também. Reconhecer erros não é demérito para ninguém. Deixar de reconhecer é um problema, porque voltam. Como se diz em psicanálise, quando não se reconhece, não se supera o passado. Fica como um passado que não passa, assombra o presente e compromete o futuro. Do ponto de vista psicanalítico, é uma das razões pelas quais me tornei candidato. Em um momento de intolerância, ódio, violência, o Brasil precisa de um psicanalista.