O globo, n. 31040, 01/08/2018. País, p. 6

 

‘Negar dívida com escravidão é apagar a História’

Daniel Salgado

Juliana Dal Piva

Mariana Martinez

01/08/2018

 

 

Historiadores afirmam que, ao defender ideias como ‘o português nem pisava na África’, e ‘eram os próprios negros que entregavam os escravos’, presidenciável do PSL, Jair Bolsonaro, comete erros básicos sobre os fatos que marcaram o país

Em uma resposta durante a entrevista que concedeu ao programa “Roda Vida”, da TV Cultura, o presidenciável do PSL, Jair Bolsonaro, negou que o Brasil tenha uma dívida histórica com a população negra por causa da escravidão. Ele afirmou que “o português nem pisava na África e eram os próprios negros que entregavam os escravos”. Historiadores avaliam que o deputado federal se equivocou.

— Negar que exista uma dívida histórica (com a escravidão) é simplesmente querer apagar a História, esquecer ou fingir que não existiu um passado que nos liga a uma escravização por 400 anos e ainda é presente na sociedade atual de diferentes maneiras. Uma delas é o próprio racismo — afirmou Iamara da Silva Viana, doutora em História e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Iamara lembra que a população negra trazida ao país começou a chegar especialmente no primeiro ciclo da cana de açúcar, quando o país era colônia de Portugal. Segundo ela, esse período, no século 16, foi um dos de maior lucratividade para os portugueses. Depois, quando o país aboliu a escravidão, os negros não foram inseridos de uma forma igualitária na sociedade.

—Não sei se é falta de informação ou se ele faz uso do que mais lhe convém. Pensar na escravidão nas Américas, de modo geral, é pensar num grupo específico que teve um lucro muito grande em cima disso e atendia, claro, interesses específicos também de africanos, mas principalmente de europeus, sobretudo portugueses e espanhóis. Dizer que os portugueses não foramàÁf ri capara comprar escravizado sé completamente equivocado—analisa I amara.

Lilia Moritz Schwarcz, professora titular de Antropologia da USP e da Global Scholar na Universidade de Princeton, explica que o comércio feito por Portugal e suas empresas coloniais chegava a uma escala inédita na História, com participação ativa dos europeus.

— O contato dos portugueses com o continente africano é anterior até à chegada ao Brasil, por quase meio século. Já naquele momento se utilizava mão de obra escravizada em cidades europeias. A coroa tinha bases em Cabo Verde, nas ilhas de São Tomé e Madeira, o que mostra que eles tinham um pé muito grande na região da África Ocidental e que se estendeu para a chamada Costa Atlântica Saariana — diz Lilia , que organizou o “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flávio Gomes. Ela destaca que a presença era também física, como no caso do porto de Luanda, onde havia a “administração desse comércio de almas”. No total, 4,9 milhões de pessoas foram escravizadas e traficadas para o Brasil.

“UMA GRANDE CONFUSÃO”

Para Lilia Schwarcz, o Brasil tem mais do que uma dívida histórica e monetária, mas também ética e cultural:

— Para essa população escravizada, lhes foi negado o direito a se alfabetizar, cultuar suas próprias religiões entre diversos outros pontos. Ali se criou uma relação de poder que tem consequências diretas no racismo estrutural que se vive hoje no Brasil.

Para a historiadora e cientista política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Heloísa Starling, colocar um tema tão complexo dessa forma, é fazer uma grande confusão:

— A sociedade ainda hoje é escravista porque nós temos uma herança. Essa raiz está presente na profunda desigualdade que existe em relação aos negros e isso precisa ser enfrentado.

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Continência para a estratégia política

Pedro Dias Leite

01/08/2018

 

 

No lugar da tática do confronto que marcou sua carreira parlamentar em seus mandatos no Congresso, deputado preferiu se esquivar na entrevista para o programa Roda Viva, da TV Cultura

A entrevista de Jair Bolsonaro no “Roda Vida”, seu primeiro teste em sabatinas na disputa pela Presidência, mostrou um candidato que tenta esconder sua faceta radical e mais preparado para fugir de perguntas incômodas do que indica sua trajetória histriônica na política.

Depois de começar um pouco nervoso, ficou à vontade. Pela primeira vez de maneira tão concatenada, Bolsonaro admitiu “exageros” em declarações do passado e atribuiu o radicalismo — como o pedido de fuzilamento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso —à indignação com os erros dos políticos e à corrupção, algo que encontra eco na avaliação dos eleitores. Segundo pesquisa Datafolha de junho, 67% dos brasileiros não confiam no Congresso Nacional, um recorde. O que o capitão reformado parece tentar dizer é: “Também, diante desses absurdos, quem não falaria o que eu falei?”.

O truque não implica um abandono de suas posições linha-dura: afirmou que não dá para enfrentar com flores bandidos que atiram de fuzil, colocou em dúvida a tortura na ditadura (que deixou mais de 300 mortos e desaparecidos), questionou o suicídio do jornalista Vladimir Herzog no principal programa da emissora da qual ele era diretor quando foi assassinado num cárcere pelo regime militar.

Além da modulação do discurso, Bolsonaro conseguiu escapar das principais perguntas incômodas. Em vez da tática do confronto que marcou sua carreira parlamentar, preferiu se esquivar. O fuzilamento da Rocinha se não houvesse rendição dos bandidos, algo defendido há poucos meses, já em campanha, virou algo que não era bem assim, só se os bandidos estivessem numa região isolada (na Rocinha?). Nas dúvidas sobre economia, melhor perguntar para o economista Paulo Guedes; nas questões sobre saúde, evasivas.

No balanço final, Bolsonaro conseguiu acenar ao eleitor que gosta dele porque está “contra tudo isso que está aí e fala as verdades”, mantendo a linha-dura sem escorregar para o assombro que caracterizou declarações passadas. E, bem treinado, escondeu seu evidente despreparo em áreas fundamentais para um futuro governo.

O capitão reformado parece ter batido continência para o marketing político, com uma performance preparada para tentar levá-lo ao segundo turno.

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Nos bastidores, orientação para ser menos impulsivo

Jussara Soares

01/08/2018

 

 

Bolsonaro foi treinado para reagir de forma estratégica a perguntas e pensar só em eleitores

Antes da primeira sabatina como pré-candidato à Presidência pelo PSL, Jair Bolsonaro recebeu orientações de que deveria abandonar o comportamento reativo. Ao longo de semanas, o candidato foi confrontado com o teor das perguntas feitas a ele pela imprensa, principalmente da coletiva concedida por ele logo depois da convenção que homologou sua candidatura presidencial.

Horas antes, num quarto de hotel, a orientação foi reforçada, enquanto o candidato aproveitava o tempo para fazer orações.

Para a campanha,a entrevista ao programa “Roda Viva” foi considerada uma virada no comportamento do presidenciável. A equipe de Bolsonaro vinha observando que era preciso suavizar o trato do político com os repórteres. A estratégia foi justamente mostrar a ele que todas as perguntas feitas durante a coletiva tratavam de temas relativos à candidatura.

— O Bolsonaro tem se apresentado competitivo, é natural que passe a ser mais respeitado. Ele percebeu isso e está mudando a postura —disse um interlocutor.

Para enfrentar os entrevistadores, Bolsonaro recebeu um perfil detalhado de cada jornalista e a orientação de que deveria responder sempre pensando no eleitorado, e não nos críticos.