O globo, n. 31040, 01/08/2018. País, p. 10

 

Mais de meio século de defesa da ética e na luta pelos direitos humanos

01/08/2018

 

 

O jurista que se notabilizou no combate aos crimes policiais e pela redemocratização militou no PT e também assinou impeachment de Dilma

Com um histórico de atuação em defesa dos direitos humanos, Hélio Bicudo foi um dos mais importantes juristas brasileiros na segunda metade do século XX e início do terceiro milênio. Como promotor público, notabilizou-se pela investigação de crimes cometidos por policiais. Foi uma voz ativa pelo fim da ditadura e, com a redemocratização, filiou-se ao PT, pelo qual foi deputado e vice-prefeito de São Paulo. As mais de duas décadas no partido não lhe impediram de, dez anos depois de se desfiliar, ter assinado o pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

Nascido em 5 de julho de 1922 na cidade Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, se formou em Direto pela Universidade de São Paulo em 1946. No ano seguinte, começou a trabalhar como promotor, tendo servido em cidades do interior do estado como Sorocaba, Franca, Jaboticabal e Araçatuba. Em 1959, assumiu a secretaria da Casa Civil do governo de Carvalho Pinto em São Paulo. Na presidência de João Goulart, foi chefe de gabinete do Ministério da Fazenda, que tinha Carvalho Pinto como titular, em 1963. Sua atuação pelos direitos humanos ganhou destaque entre 1969 e 1970, quando combateu como procurador de Justiça a atuação do esquadrão da morte, que executava jovens.

Fora dos cargos públicos no período da ditadura militar, acabou escolhido para presidir o Centro Santo Dias de Defesa dos Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo. Ingressou no PT e foi vice na chapa encabeçada por Lula que disputou o governo de São Paulo em 1982. Na gestão de Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo, ocupou o cargo de secretário dos Negócios Jurídicos entre 1989 e 1990. Na mesma época, teve conflitos com José Dirceu pela disputa do comando do diretório petista da capital paulista.

VICE-PREFEITO EM SP

Foi eleito deputado federal por duas vezes, em 1990 e 1994. Em 1997, integrou a comissão de sindicância interna do PT que investigou os contratos entre empresas do advogado Roberto Teixeira, compadre de Lula, e prefeituras petistas. No livro “Minhas memórias”, lançado em 2007, Bicudo lamenta não ter se aprofundado na apuração, que poderia chegar a Lula.

Além dos cargos políticos, presidiu a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) entre 1998 e 2001.

Devido à sua ligação com a Igreja Católica, foi escolhido candidato a vice de Marta Suplicy na disputa vitoriosa pela prefeitura paulistana em 2000. O objetivo era diminuir a resistência de alguns setores da sociedade à candidata.

Em 2005, contrariado com a postura do partido no escândalo do mensalão, deixou o PT, junto com outros militantes como Plínio de Arruda Sampaio. Disse, na época, que o partido havia “desviado de sua rota” e se afastado dos “ideais éticos e morais”. Ao contrário de Plínio, que ingressou no PSOL, optou por não se filiar a nenhuma legenda. Longe da vida partidária, Bicudo seguiu militando pelos diretos humanos e denuncia abusos cometidos no país. Atualmente presidia a Fundação Interamericana de Defesa dos Diretos Humanos, da qual foi um dos fundadores.

Em outubro de 2015, Bicudo assinou o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, ao lado dos também juristas Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal. Na época, em entrevista concedida ao GLOBO, disse que estava “decepcionado” com o partido e que Dilma havia cometido crimes “contra a boa administração”.

A morte de Bicudo foi lamentada nos meios jurídico e político. O presidente Michel Temer declarou que “o Brasil perdeu um homem notável. Ao longo de sua vida, pudemos conhecer toda sua trajetória de defesa dos valores democráticos”.

O presidente da Câmara dos deputados, Rodrigo Maia, disse que Bicudo foi “um jurista que sempre se posicionou com coragem em defesa dos direitos humanos e da democracia no nosso país”.

O advogado Miguel Reale Jr. disse que Bicudo será lembrado por ter sido o símbolo de, segundo ele, dois momentos de luta contra o abuso de poder.

“É uma perda significativa, um homem que é símbolo de duas épocas de luta contra o abuso de poder. É um homem exemplar, fazia da política uma dedicação e nunca se valeu dela para qualquer interesse pessoal. É um exemplo importante para os brasileiros”, lamentou.

A senadora Marta Suplicy (MDB-SP), de quem Bicudo foi vice-prefeito em São Paulo, afirmou que o Brasil perdeu “um grande democrata e grande defensor dos direitos humanos”.

Para o jurista Modesto Carvalhosa, seu colega “foi o maior modelo de coragem que tive na vida. Um homem que teve coragem de assumir suas posições e também de revê-las. A maior coragem foi enfrentar o Esquadrão da Morte. Teve também coerência quando se desligou do PT”.

Hélio Bicudo morreu na manhã de ontem em sua casa, nos Jardins, em São Paulo, aos 96 anos. Ele foi casado por 71 anos com Déa Pereira Wilken Bicudo, que morreu em março deste ano. Eles tiveram sete filhos.