Correio braziliense, n. 20197, 07/09/2018. Mundo, p. 12

 

O amor triunfou

Rodrigo Craveiro

07/09/2018

 

 

ÍNDIA » Máxima instância do Judiciário descriminaliza a homossexualidade, ao considerar "inconstitucional" o artigo do Código Penal que previa pena perpétua e considerava relações contrárias à ordem natural. Ativistas da comunidade LGBT celebram o avanço histórico

O poeta e romancista indiano Vikram Seth escreveu que “não ser capaz de amar aquele que você ama é ter a própria vida arrebatada”. “Fazer isso a alguém é como assassinar sua alma”, comentou. Ontem, os cinco juízes do Supremo Tribunal da Índia concederam à comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Trans ou Transgêneros) o direito de amarem sem o risco de serem condenados à prisão perpétua ou a pagamento de multa. Em caráter unânime, a máxima instância do Judiciário decidiu descriminalizar a homossexualidade, ao considerar inconstitucional o Artigo 377 do Código Penal. A legislação tratava as relações entre pessoas do mesmo sexo como contrárias à ordem da natureza.

“Penalizar o relacionamento carnal é irracional, arbitrário e manifestamente inconstitucional”, declarou Dipak Misra, presidente do Supremo Tribunal, durante a leitura da sentença. “Qualquer relação sexual com o consentimento mútuo de dois adultos — homossexuais, heterossexuais ou lésbicas — não pode ser inconstitucional”, sublinhou, ao explicar que a lei “se converteu em uma arma de assédio contra a comunidade LGBT”. No país de 1,25 bilhão de habitantes, ativistas celebraram com balões, bandeiras com as cores do arco-íris, beijos e abraços. Apesar do avanço histórico, 72 nações no mundo ainda criminalizam os atos homossexuais, passíveis de execuções.

Morador de Mumbai, o gerente de mídias sociais Ankit Dasgupta, 24 anos, assumiu a homossexualidade em 2015. Ontem, não escondeu a alegria e o alívio. “Durante todo o julgamento, ficamos com os dedos cruzados. Tínhamos fé no Judiciário de que o Artigo 377, essa legislação arcaica, introduzida pelas autoridades coloniais britânicas e utilizada como modelo para leis de sodomia, seria derrubada”, contou ao Correio. “Estamos tomados pela alegria e realizamos uma pequena marcha pelo Orgulho Gay aqui em Mumbai. Mas as celebrações estremeceram toda a Índia.” Segundo Dasgupta, a luta  da comunidade LGBT transcendia o direito à prática homossexual. “A nossa batalha era por igualdade, por privacidade, para que tivéssemos liberdade de escolher o parceiro e de vivermos igualitariamente em nossa sociedade democrática.”

Desde a sua adoção, em 1861,  menos de 200 indianos foram processados sob o Artigo 377. O major Navdeep Singh, advogado na Suprema Corte para os estados de Punjab e Haryana, explicou à reportagem que, ao decidir que a relação consensual entre adultos de qualquer gênero não é crime, o Supremo Tribunal decretou o fim do estigma. “Isso surtirá efeito positivo sobre outros direitos civis da comunidade LGBT, uma vez que fica determinado que as pessoas não mais podem ser discriminadas com base em sua sexualidade”, admitiu. De acordo com ele, um artigo tão arcaico não teve lugar em uma democracia vibrante como a Índia.

Progressista

Porta-voz do Congresso Nacional Indiano — o maior e mais importante partido político do país —, Szarita Laitphlang considerou “refrescante ver uma Índia moderna finalmente vivendo os valores liberais de nossos ancestrais”. “Cada ser humano tem o direito de amar e de ser amado, e não pode ser criminalizado por exercer o direito à privacidade, à expressão e à liberdade. É uma interpretação progressista do sistema democrático indiano, defendido pela Constituição.” Para ela, “o veredicto progressista e decisivo é  apenas o início de uma sociedade mais igual e inclusiva na Índia”.

Até o fechamento desta edição, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, não tinha se pronunciado sobre a anulação do Artigo 377. Conservador em temas sociais, o chefe de governo, de tendência nacionalista, preferiu o silêncio nos últimos meses e deixou a apreciação do tema a cargo da Justiça. Asmita Basu, diretor de Programas da Anistia Internacional na Índia, afirmou que o veredicto deu esperança a todos para lutarem pela justiça e pela igualdade. “O julgamento fecha a porta  sobre um capítulo sombrio da história da Índia. Ele marca uma nova era de igualdade para milhões de pessoas na Índia”, disse. Meenakshi Ganguly, diretor para o Sul da Ásia da Human Rights Watch (HRW), sublinhou que este foi um “dia bom para os direitos humanos”. “Obrigado a todos que lutaram por isso, enfrentando o pior tipo de preconceito.”

Frase

“Qualquer relação sexual com o consentimento mútuo de dois adultos — homossexuais, heterossexuais ou lésbicas — não pode ser inconstitucional”

Dipak Misra, presidente do Supremo Tribunal Indiano, durante a leitura da sentença

O que dizia a lei

O Artigo 377 do Código Penal Indiano destaca: “Quem quer que voluntariamente tenha relações carnais contra a ordem da natureza com qualquer homem, mulher ou animal, será punido com prisão perpétua, ou com prisão por um período que pode se estender a 10 anos, além de multa”. A lei arcaica datava de 1861, quando passou a valer em 42 ex-colônias britânicas, inclusive a Índia.

Entre a morte e o casamento

A homossexualidade é reprimida, até mesmo com a pena de morte, em muitos países, enquanto em outros é abertamente reconhecida e são permitidos casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

Crime na África

Pelo menos 30 países proíbem a homossexualidade no continente africano. Uma das exceções é a África do Sul, que legalizou o casamento gay em 2006. A adoção, a reprodução medicamente assistida (RMA) e a gestação sub-rogada são autorizadas. As relações entre pessoas do mesmo sexo são punidas com a morte no Sudão, na Somália e na Mauritânia. Apenas alguns países — Gabão, Costa do Marfim, Mali, Chade, Moçambique e República Democrática do Congo — as descriminalizaram.

Repressão no Oriente Médio

No Oriente Médio, Israel permite a adoção, mas uma lei exclui os casais homossexuais da gestação por meio da barriga de aluguel, uma ação que provocou protestos maciços. Apesar de não ser autorizado, o casamento gay é reconhecido quando realizado no exterior. O Líbano é mais tolerante do que outros países árabes, onde, em teoria, os homossexuais ficam expostos à pena capital, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

Evolução na Ásia

A Índia acaba de descriminalizar a homossexualidade, e Taiwan logo se converterá no primeiro país do continente a legalizar o casamento gay. O tabu sobre a homossexualidade também parece cair no Vietnã e no Nepal. O Supremo Tribunal das Filipinas analisa, desde junho, os argumentos a favor do casamento gay.

Pioneirismo na Europa

A Holanda se converteu, em 2001, no primeiro país do mundo a legalizar o casamento homossexual. Outros Estados europeus seguiram os seus passos: Bélgica, Espanha, Noruega, Suécia, Portugal, Islândia, Dinamarca, França, Reino Unido (exceto a Irlanda do Norte), Luxemburgo, Irlanda, Finlândia, Malta e Alemanha. Hungria, República Tcheca, Áustria, Croácia, Chipre, Suíça, Itália e Grécia reconhecem as uniões civis. A maioria dos países da Europa Oriental — Lituânia, Letônia, Polônia, Eslováquia, Romênia e Bulgária — não autoriza a união nem o casamento. A República Tcheca se propõe incluir o casamento gay em seu Código Civil e poderia se tornar o primeiro país pós-comunista a fazê-lo. Na Rússia, a homossexualidade foi considerada crime até 1993 e doença mental até 1999. Holanda, Dinamarca, Suécia, Espanha, Bélgica, França e Reino Unido autorizam a adoção de crianças por casais do mesmo sexo (casadas ou em união civil).

Progresso nas Américas

O Canadá legalizou o casamento homossexual e autoriza a adoção, a reprodução medicamente assistida e a gestação por substituição. Em 2015, nos EUA, a Suprema Corte legalizou o casamento gay em todo o país. Na América Latina, quatro países permitem esse tipo de união: Argentina (desde 2010), Uruguai, Colômbia e Brasil.

Povo fala

Ankit Dasgupta, 24 anos, gerente de mídias sociais, morador de Mumbai (Índia). Assumiu-se gay em 2015

“A nossa batalha ainda não acabou. Abandonar o Artigo 377 do Código Penal Indiano foi apenas o primeiro passo. Nós temos um longo caminho pela frente. Precisamos solicitar as petições pelo Direito ao Casamento e pelo Direito à Adoção. Eu desejo viver em uma Índia que me reconheça como cidadão igual, com todos os benefícios, como os que os heterossexuais usufurem em nossa sociedade.”

Szarita Laitphlang, porta-voz do Congresso Nacional Indiano

“É um julgamento simbólico, mas nós temos uma longa estrada pela frente. Enquanto sociedade, nós precisamos refletir e provocar uma mudança de atitude. É importante entender o que julgamento disse: que dois adultos consensuais podem fazer escolhas pessoais, independentemente do gênero, da casta e da religião. Eles devem ter permissão para estar com quem desejarem.”

Navdeep Singh, advogado no Supremo Tribunal para os Estados de Punjab e Haryana em Chandigarh (Índia)

“A atmosfera, em toda a Índia, é eufórica. Eu definitivamente senti, hoje (ontem), que a Corte defendeu as liberdades individuais. Nossos tribunais constitucionais — o nosso Supremo Tribunal e as Altas Cortes nos estados — são conhecidos por apoiarem firmemente as liberdades e os direitos fundamentais dos indivíduos, como garantido pela Constituição da Índia.”