Correio braziliense, n. 20199, 09/09/2018. Mundo, p. 14

 

Sem limites para filhos

Rodrigo Craveiro

09/09/2018

 

 

CHINA » Novo Código Civil não menciona o controle de natalidade, um sinal de que o governo de Xi Jinping estuda derrubar restrição sobre o número de crianças por casal. Mudança romperia com norma vigente há 39 anos e seria impulsionada pelo envelhecimento

Com 1,3 bilhão de habitantes, a China se prepara para pôr fim ao controle de natalidade. No fim de 2015, o país aboliu a chamada “política do filho único” e autorizou um limite de dois filhos por família. O diário jurídico oficial Jiancha Ribao divulgou recentemente que um novo Código Civil, em fase de preparação, omite o tema do planejamento familiar, o que indicaria que Pequim pretende derrubar as diretrizes  impostas pelo Partido Comunista da China, em 1979, três anos depois da morte de Mao Tsé-tung. O governo de Xi Jinping não confirma a mudança. Um artigo do jornal oficial China Daily aborda o assunto de forma enigmática e sustenta que “a remoção do planejamento familiar do rascunho (do Código Civil) não significa o fim da política” (de limite de filhos).

No entanto, existe um consenso entre especialistas de que a China enfrenta um rápido envelhecimento de sua população, capaz de surtir impacto desastroso sobre a economia. Ativistas de direitos humanos também denunciam o fato de que a “política do filho único” foi implantada às custas de abortos forçados, esterilizações em massa e multas. Com a preferência das famílias por um filho homem, a sociedade chinesa tem experimentado uma redução da população feminina.

Diretor do SOAS China Institute da Universidade de Londres — a maior comunidade de estudiosos chineses na Europa —, Steve Tsang admite ao Correio a probabilidade de Pequim remover as restrições sobre os nascimentos. “Eu duvido que isso surta muito impacto. A taxa de fertilidade costuma ser afetada por muitos fatores, e o sistema político é um deles. O mais importante é uma mudança na atitude da população, que segue transformações socioeconômicas.” Ele explica que a demografia chinesa se modificou como resultado da reforma pós-Mao e das mudanças econômicas. “A taxa de fertilidade cairia, independentemente da ‘política do filho único’. Ao compararmos Hong Kong com a China, fica claro que o impacto sobre as alterações na demografia da China foi mais marginal do que substancial. Em Hong Kong, onde a ‘política do filho único’ jamais foi implementada, a taxa de fertilidade é de 1,2 criança por mulher. Na China, o índice chega a 1,57”, exemplifica.

De acordo com Tsang, a restrição demográfica provocou enorme abuso de direitos humanos, que incluiu o aborto tardio forçado e um exame intrusivo em mulheres com suspeita de gravidez e que já tivessem um filho. “Abandonar a ‘política do filho  único’ foi um passo na direção certa, mas o governo deveria reconhecer a reversão de um grande erro político cometido por si mesmo”, defende.

A jornalista malaio-chinês-americana Mei Fong (leia o Duas perguntas para) — ganhadora do Prêmio Pulitzer em 2007 e autora de One child: The past and future of China’s most radical experiment (“Um filho: o passado e o futuro do experimento mais radical da China”) — afirma à reportagem que vê a tendência do fim do limite sobre a natalidade como uma das últimas etapas das políticas de planejamento populacional. “O fim é importante, pois levará a um tipo de inventário nacional e à avaliação da política. Embora seja pouco provável que Pequim reavalie as partes mais sensíveis e dolorosas da história recente, como a Revolução Cultural (1966-1976) e o Massacre da Praça da Paz Celestial (1989), o senso de pôr fim à ‘política do filho único’ levou a discussões públicas e à análise de muitos aspectos da política, desde o social até o econômico.”

Ceticismo

Por sua vez, Yong Cai, professor de sociologia da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, entende que o novo Código Civil é um dos muitos sinais de que a China se afasta das restrições sobre os nascimentos. No entanto, ele revela ceticismo em relação aos efeitos práticos da medida. “Apesar de tal manobra carregar importante significado social, o seu impacto demográfico será limitado, pelo menos a curto prazo. Não veremos um baby boom surgindo disso”, reconhece, em entrevista por e-mail. O especialista frisa que a “política do filho único” somente foi possível na China. “Imagine outro governo tentar impor esse tipo de norma draconiana. Ele não sobreviveria por tanto tempo”, sugere Cai.

“Os chineses vão se mudar para uma política de três filhos ou mesmo abandonar os limites. É uma questão de pragmatismo”, prevê Stuart Gietel-Basten, vice-reitor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong. Segundo ele, a principal preocupação diz respeito ao envelhecimento da população e ao declínio da força de trabalho. “Como em muitos países, acredita-se que ter mais filhos seja uma boa forma de consertar o desequilíbrio demográfico. No entanto, é muito mais eficiente permitir que a população viva mais e se torne produtiva e ativa na velhice, o que reduziria a dependência na terceira idade.”

Selo premonitório?

Em 2019, a China celebrará o “Ano do Porco”. Para marcar o evento, o governo de Pequim divulgou um selo que despertou rumores. A imagem de dois porcos e seus três filhotes seria uma indicação de que as autoridades do Partido Comunista da China preveem a flexibilização na política de crianças por casal. Em 2016, o país criou um selo do “Ano do Macaco” mostrando dois filhotes, em alusão à então recente abolição da política de filho único.

Pontos de vista

Por Steve Tsang

Do bônus ao deficit

“A China se beneficiou, significativamente, por ter um bônus demográfico nos últimos 30 a 40 anos de reforma e de crescimento rápido. O país está entrando em um estágio no qual o bônus demográfico se tranforma em deficit demográfico, o que significa que a população economicamente ativa está encolhendo, enquanto a idosa cresce. Daí a necessidade de abandonar a política de único filho ou as restrições sobre nascimentos por casais.”

Diretor do SOAS China Institute da Universidade de Londres

Por Stuart Gietel-Basten

Multas contra operações ilegais

“A China tem declarado, de forma repetida, que a lei (do filho único) deveria ser seguida de forma estrita, e que as operações forçadas, como o aborto e a esterilização, jamais deveriam ser permitidas. Os abortos e esterilizações foram ilegais e cometidos por autoridades que buscavam atingir alvos específicos para taxas de fertilidade. Nos últimos anos, multas ou ‘taxas de manutenção social’ foram meios usados para garantir a conformidade.

Vice-reitor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong

Por Yong Cai

Realidade enfrentada

“A China tem de enfrentar a realidade demográfica. A fertilidade tem sido baixa por uma geração. A expectativa de vida vem aumentando. A ‘política do filho único’ se intrometeu nas partes privadas de nossa vida: o sexo e a reprodução. Sempre que uma força externa, governo ou igreja, tenta controlar essas partes, a resistência e a controvérsia aumentarão.”

Professor de sociologia da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill