Correio braziliense, n. 20193, 03/09/2018. Brasil, p. 5

 

A maior tragédia cultural da América Latina

Ingrid Soares

03/09/2018

 

 

SOCIEDADE » Incêndio atinge o Museu Nacional do Rio de Janeiro, local que guarda grande parte da memória do país, como o crânio de Luzia, com 12 mil anos de idade. Diretor-adjunto da instituição afirma que curto-circuito pode ter iniciado o fogo

Uma parte da história brasileira queimou na noite de ontem. Um dos locais mais importantes para a memória do país, o Museu Nacional na Quinta da Boa Vista, na zona norte do Rio de Janeiro, foi atingido por um incêndio. O fogo começou por volta das 19h30 e consumiu cerca de 20 milhões de peças. Entre elas, o maior tesouro arqueológico do país, o crânio de Luzia, o esqueleto mais antigo já encontrado nas Américas, com cerca de 12 mil anos de idade. Especializado em história natural, era o mais antigo centro de ciência do Brasil e o maior museu do tipo na América Latina.

Ao Correio, o antropólogo e diretor-adjunto do Museu Nacional do Rio, Luis Fernando Dias Duarte, afirmou que praticamente todo o prédio foi atingido. “Continha salas históricas do imperador e do embaixador. Tinha coleções de arte importantíssimas. Tinha uma exposição temporária de móveis e peças de época. Foram milhões de coleções científicas, indígenas e greco-romanas perdidas. Tinha a coleção egípcia, a mais significante da América Latina. Também se perdeu a biblioteca de projeto de pós-graduação em antropologia social, a mais rica do Brasil”, lamentou.

No momento do incêndio, o museu estava fechado para visitação e havia apenas quatro vigilantes no local, que não se feriram. Para Luis Fernando, o incêndio pode ter sido iniciado por um curto-circuito em alguma das salas e tomado proporções maiores pelas más condições do museu. Está marcada para hoje uma reunião a fim de discutir as providências a serem tomadas.

Especialistas de todo o Brasil ficaram consternados. Lia Zanotta, professora de antropologia da UnB e presidente da Associação Brasileira de Antropólogos (ABA), afirmou que o museu estava em más condições.“Era visível a falta de condições em relação a acervos e trabalhos. Foi uma perda imensa”, comentou. “Não era apenas um museu, mas um lugar de trabalho para pesquisadores. A história contida no museu não é só do passado. Ele abrigava produções científicas em andamento. Toda a história mundial em jogo, produção em antropologia, arquivologia, quadros históricos, um acervo fantástico. O maior do Brasil em termos de história”, queixou-se Zanotta.

A professora se refere, entre outros itens, a quadros de Portinari, o manto do rei Liholiho do Havaí e o trono do reino africano de Daomé, que estavam na coleção do Museu Nacional desde 1818 e, agora, se perderam. A última peça foi uma doação dos embaixadores do Rei Adandozan (1797-1818) ao príncipe regente D. João VI. Emocionado, Luis Fernando Dias Duarte conta que a tragédia era anunciada e poderia ter sido evitada. “Se os recursos tivessem sido aprovados antes, isso não teria acontecido. Era uma briga antiga. O museu não teve o apoio que merecia e o resultado final foi esse”.

Reforma aprovada

O diretor-adjunto do museu lamenta a tragédia em um momento em que a instituição começaria a passar por uma renovação. “É um absurdo, porque acabamos de conseguir aprovar com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) o valor de R$ 21,7 milhões para a reforma, incluindo sistema de prevenção de incêndio, assim que terminasse o período de eleições”, lembra. O  BNDES assinou o contrato de financiamento no dia 6 de junho, no valor de R$ 21,7 milhões, “para apoio à restauração e requalificação do Museu Nacional”, segundo registro à época. O valor aprovado pelo BNDES ajudaria na recuperação física do prédio histórico, de acervos, de espaços expositivos — estimulando maior atração de público e promoção de políticas educacionais vinculadas a seus acervos — e do entorno do museu.

Em nota, o presidente Michel Temer lamentou o ocorrido. “Incalculável para o Brasil a perda do acervo do Museu Nacional. Hoje é um dia trágico para a museologia de nosso país. Foram perdidos duzentos anos de trabalho, pesquisa e conhecimento. O valor para nossa história não se pode mensurar, pelos danos ao prédio que abrigou a família real durante o Império. É um dia triste para todos brasileiros”, escreveu, em nota.

O ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, afirmou à Agência Brasil que o país precisa dar mais atenção ao patrimônio nacional. “A perda é irreparável. Certamente a tragédia poderia ter sido evitada. O MinC está de luto. A cultura está de luto. O Brasil está de luto. É vital refazer o Museu Nacional, revendo também seu modelo de gestão. E investir agora para que isso não aconteça nos demais museus públicos e privados.”

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Funcionários acompanham

03/09/2018

 

 

Dezenas de funcionários da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) acompanham o incêndio que, atingiu o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, na zona norte do Rio. Dois andares foram bastante destruídos. O fogo foi controlado mais de quatro horas depois do início por bombeiros de sete quartéis. Até o fechamento desta edição, não havia informações da Defesa Civil sobre o risco de desabamento do edifício. Parte do telhado caiu, quando as madeiras de sustentação se romperam.

Uma equipe especializada da corporação entrou no prédio por volta das 21h15 para tentar bloquear áreas ainda não atingidas pelas chamas e avaliar a extensão dos estragos. Várias escadas Magirus foram usadas, e caminhões-pipa se revezam fornecendo água para o trabalho de combate às chamas.

Bombeiros que atuaram no  incêndio informaram que uma pequena parte de acervo foi retirada antes de ser atingida pelo fogo. Não foi dito quais são essas peças nem para onde elas foram transportadas. Uma parte das peças não fica nesse prédio, então, está preservada. Mas o que havia em exposição aparentemente foi todo consumido.

Entre os funcionários que, em prantos, acompanhavam o incêndio estava o bibliotecário Edson Vargas da Silva, 61 anos, que trabalha há 43 anos no museu. “Tem muito papel, o assoalho de madeira, muita coisa que queima muito rápido. Uma tragédia. Minha vida toda estava aí dentro”, afirmou