Correio braziliense, n. 20194, 04/09/2018. Mundo, p. 12
Frente contra a crise
Rodrigo Craveiro
04/09/2018
VENEZUELA » Sem a presença do regime de Nicolás Maduro, 13 países da América Latina se reúnem em Quito para debater uma fórmula comum de abordagem do pior êxodo da história da região. Governos devem divulgar declaração conjunta ao fim do encontro
Com a ausência da Venezuela, que comparou a crise migratória a uma “campanha diabólica” e a um “show” para atacar a revolução bolivariana, representantes de 13 países (Argentina, Brasil, Bolívia, Costa Rica, Colômbia, Chile, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai) iniciaram ontem, em Quito, uma reunião para debater uma fórmula comum para regularizar os milhares de refugiados venezuelanos. O regime de Nicolás Maduro não enviou delegados à sede do Ministério das Relações Exteriores equatoriano e tampouco se justificou.
“Será muito importante (...) encontrar propostas para resolver a situação de milhares de venezuelanos que, por diferentes razões, não tiveram ou não têm acesso a um status migratório laboral e regular em nossos países”, comentou o chanceler encarregado do Equador, Andrés Terán, segundo o qual a Venezuela se encontra no centro de uma “crise migratória e humanitária”. Amanhã, a pedido do ex-chanceler uruguaio Luis Almagro, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), o Conselho Permanente da entidade se reunirá, em caráter extraordinário, para debater o tema.
Enquanto o encontro ocorria, a vice-presidente da Venezuela, Delcy Rodríguez, acusou a Organização das Nações Unidas (ONU) de “converter um fluxo migratório normal em uma crise humanitária justificadora de uma intervenção”. “Nós exigimos da ONU para que trabalhe com as cifras oficiais fornecidas pelo Estado venezuelano. São as únicas que reconheceremos”, avisou, em discurso na Universidade Militar de Venezuela, transmitido em rede nacional de televisão. A expectativa é de que os 13 governos participantes da reunião em Quito divulguem, nas próximas horas, uma declaração conjunta que apresente um marco regulatório comum. Em uma das primeiras sugestões concretas apresentadas ontem, o embaixador da Argentina no Equador, Darío Giustozzi, avaliou a urgência de “unificar” documentos que facilitem o trânsito dos venezuelanos. Enquanto algumas nações exigem a apresentação de passaporte ou pedido de refúgio, outras somente permitem a entrada na fronteira com identidade e certificado de validade venezuelano ou visto.
“Incalculável”
Por telefone, Daniel José Regalado Díaz (leia o Duas perguntas para), presidente da organização não governamental Associação Venezuelana no Equador, classificou de “incalculável” a gravidade da crise. “Famílias foram separadas; perseguidos políticos e civis receberam ordem de execução ou prisão; crianças são roubadas na fronteira. Alguns migrantes venezuelanos têm sido obrigados a desempenhar o papel de mulas do narcotráfico, enquanto mulheres se veem empurradas à prostituição”, lamentou ao Correio. “O ditador (Nicolás) Maduro e seus asseclas escondem uma realidade latente na Venezuela, respaldando-se com um governo vil, que não se importa com o bem-estar da população e tudo o que deseja é se manter no poder.”
Regalado defende que a saída mais plausível para a crise migratória passa pela definição de ações políticas contra o regime de Maduro. “No desespero para comer, alguns venezuelanos têm praticado roubos. Outros pedem ajuda a entidades internacionais e a organizações sociais do Equador. Nossa ação, sem fins lucrativos, conseguiu ajudar mais de 300 pessoas em pouco mais de um mês, com auxílos jurídico, alimentício, médico e psicológico”, relatou.
O chanceler encarregado do Equador compartilhou da preocupação de Regalado. Segundo Terán, os venezuelanos que emigram “são altamente vulneráveis ao tráfico de pessoas, à exploração da mão de obra, à falta de acesso à segurança social, à extorsão, à violência, ao abuso sexual, ao recrutamento para atividades criminosas, à discriminação e à xenofobia”.
Ontem, as organizações não governamentais de caráter humanitário Human Rights Watch (HRW) e Anistia Internacional (leia abaixo) cobraram a adoção de medidas unificadas para confrontar a crise. Em artigo publicado pela agência espanhola EFE, o presidente Michel Temer declarou que o Brasil segue promovendo “medidas diplomáticas que estimulem o governo venezuelano a retomar o caminho da democracia, da estabilidade e do desenvolvimento”.
Colômbia se opõe a intervenção militar
O presidente colombiano, Iván Duque, alertou que uma intervenção militar na Venezuela comandada pelos EUA “não é o caminho” para solucionar a crise migratória. Ele defendeu uma estratégia que “isole diplomaticamente o governo de Nicolás Maduro” e permita aos venezuelanos seguir rumo a uma “transição” democrática. “Acredito que os EUA sejam os primeiros a entender que uma intervenção militar de caráter unilateral não é o caminho”, enfatizou Duque. Em entrevista à Rádio Caracol, o chefe de Estado acrescentou que a “pressão internacional” tem que levar “o próprio povo venezuelano a permitir essa transição”.
2,3 milhões
Total de venezuelanos que fugiram do país desde 2014, de acordo com a Organização Internacional das Migrações (OIM)
600 mil
Número de emigrantes da Venezuela que entraram no Equador somente em 2018 — pelo menos 215 mil ficaram no país
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ONGs defendem resposta uniforme
04/09/2018
A Anistia Internacional e a Human Rights Watch (HRW), duas das mais importantes organizações não governamentais do mundo, cobraram da América Latina uma resposa concertada. “Milhões de pessoas têm sido forçadas a deixar tudo para trás e caminhar por dias a fio para escapar de massivas violações dos direitos humanos na Venezuela, incluindo detenções arbitrárias, execuções extrajudiciais, tortura e violações de seus direitos à alimentação e à saúde”, declarou Erika Guevara-Rosas, diretora para as Américas da Anistia Internacional, por meio de um comunicado. “A solução requer liderança internacional e cooperação. Países vizinhos devem mostrar solidariedade e se comprometer a proteger o povo da Venezuela nessa hora de necessidade. Eles não devem dar as costas a pessoas que simplesmente estão buscando um lugar para reconstruir suas vidas em segurança.”
Ante a gravidade da crise, a Anistia Internacional apelou aos governos por procedimentos de proteção a todos os que chegam da Venezuela. Isso inclui garantias de quem eles não sejam forçados a retornar para o seu país. Também ontem, a HRW decidiu antecipar em três dias o lançamento do relatório O êxodo venezuelano: A necessidade de uma resposta regional a uma crise migratória sem precedentes, de 35 páginas. “O documento dá conta da gravidade da crise humanitária na Venezuela, que, por sua vez, provoca um êxodo sem precedentes na região. Na história contemporânea da América Latina, jamais presenciamos tal migração, que alcança mais de 2 mil de pessoas fugindo da Venezuela por falta de medicamentos e de comida, por motivos de segurança ou por perseguição política”, afirmou ao Correio, por telefone, Jose Miguel Vivanco, diretor executivo da HRW para as Américas.
Proteção
“A mensagem mais importante do nosso relatório é para que outorguem aos venezuelanos um status temporário migratório de proteção”, explicou. Para Vivanco, no lugar de estudar cada caso, os governos deveriam “adotar uma política uniforme que permita, temporariamente, conceder uma proteção migratória a todas as famílias que escapam de uma situação gravíssima provocada pelo governo da Venezuela”. “A grande maioria das democracias latino-americanas tem se portado bem em relação à crise, mas cada país possui suas próprias políticas. Creio ser indispensável unificar critérios. O que perseguimos é uma resposta unificada e similar em toda a região.”
O relatório da HRW apresenta três recomendações às nações vizinhas da Venezuela: um mecanismo regional para compartilhar, de forma equitativa, responsabilidades e custos associados aos fluxos migratórios; um regime regional de proteção temporária aos venezuelanos; e estratégias multilaterais para tratar as causas da migração, incluindo sanções a autoridades de Caracas. (RC)
Frase
"Na história contemporânea da América Latina, jamais presenciamos uma migração que alcançasse mais de 2 milhões de pessoas”
Jose Miguel Vivanco, diretor executivo da Human Rights Watch (HRW) para as Américas, em entrevista ao Correio