Título: O carola no inferno
Autor: Valadares, João
Fonte: Correio Braziliense, 30/05/2012, Política, p. 2

O sambista Ismael Silva serviu como principal fonte de inspiração para o senador Demóstenes Torres (sem partido-GO), ontem, durante depoimento no Conselho de Ética do Senado. O parlamentar goiano pegou emprestada uma expressão do compositor carioca para fazer um mea-culpa diante de todas as acusações. "Nem tudo que se diz, se faz." Repetiu a frase três vezes ao confirmar diálogos nada republicanos com o bicheiro Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira. Resumo: pediu para ser julgado pelo que fez e não por aquilo que disse que iria fazer.

Foi um depoimento de uma nota só. Falou incansavelmente por cinco horas. Alegou que sofreu o maior massacre da história do Brasil, disse que não dormia mais, que os amigos fugiram e apelou até para a fé ao dizer que redescobriu Deus. Só não conseguiu convencer os parlamentares de que não sabia, mesmo sendo amigo íntimo por mais de 10 anos, que Cachoeira era contraventor. Ao confessar que utilizava o rádio Nextel, um presente do bicheiro, e que, ainda por cima, Cachoeira pagava a conta, pavimentou o caminho da quebra de decoro parlamentar.

Demóstenes também não soube explicar porque um senador da República utilizava um aparelho específico para se comunicar com um bicheiro. Admitiu que errou. "Hoje é fácil verificar que foi um erro. Eu não imaginava a dimensão que isso teria, mas não tinha a lanterna na popa e não tinha como adivinhar que isso seria utilizado com outras finalidades."

Dizendo-se traído por Cachoeira, o parlamentar goiano afirmou que, para ele, era apenas um empresário bem-sucedido que se relacionava com cinco governadores e dezenas de parlamentares. Acabou sendo colocado no canto da parede pelo senador Randolfe Rodrigues (PSol-AP) ao ser lembrado que foi integrante da CPI dos Bingos, responsável pelo indiciamento do bicheiro. "Como o senhor não sabia se votou o relatório final que indiciou o bicheiro?" Demóstenes ficou sem resposta e apenas repetiu que não tinha conhecimento.

PF e MP O senador goiano se complicou ainda mais no momento em que foi questionado por que havia alertado Cachoeira sobre operações que seriam deflagradas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal. Disse que havia apenas jogado um verde para testar se Cachoeira era mesmo contraventor. "Num dos momentos, eu joguei verde em cima dele. Eu disse que tem operação conjunta da PF com o Ministério Público que nunca se realizou e nunca foi cogitada. Ainda assim eu fazia esses testes com ele."

Demóstenes negou ter recebido R$ 1 milhão, como alega o Ministério Público Federal em razão de interceptações telefônicas. "Estou entregando cópia de minhas duas contas, provando que no período em nenhum momento foi depositado R$ 1 milhão em minha conta. Nem R$ 1 milhão, nem R$ 1 mil, nem R$ 3 milhões, em nenhum momento isso entrou na minha conta ou me foi dado de qualquer outra maneira."

Repercussão Na avaliação de grande parte dos integrantes do Conselho de Ética, o senador Demóstenes Torres não conseguiu convencer, durante o depoimento, que não tinha conhecimento das atividades ilícitas de Cachoeira. "Ele exerceu o amplo direito defesa. Não há, pelo seu depoimento, como ele não saber que Cachoeira praticava atividades ilegais", avaliou o senador Pedro Taques (PDT-MT). Para Randolfe Rodrigues (PSol-AP), responsável pelo pedido de abertura de processo de cassação contra Demóstenes, está claro que houve quebra do decoro parlamentar. "Os argumentos dele não são mais fortes do que os fatos. Fica claro, depois de ouvi-lo, que houve quebra do decoro. A questão do celular, por exemplo, ele meio que reconheceu."

Pecados capitais Confira os problemas apontados pelos senadores no depoimento de Demóstenes Torres que podem levar à cassação do mandato dele

Admitiu ter recebido o rádio Nextel para se comunicar com Carlinhos Cachoeira. O senador também confirmou que a conta era paga pelo bicheiro.

Em 6 de março, Demóstenes subiu à tribuna e disse que havia recebido apenas um presente de casamento de Cachoeira. Na ocasião, afirmou que poderiam grampeá-lo à vontade que não iriam encontrar mais nada. Não foi o que ocorreu. Ontem, complicou-se quando questionado se havia mentido. Disse apenas que, quando fez o discurso, ainda não tinha conhecimento das outras gravações.

Demóstenes admitiu, no depoimento, ter dialogado com Cachoeira sobre operações que iriam ser deflagradas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal. Disse que estava apenas "jogando verde" para saber se ele era contraventor. A versão não convenceu os parlamentares.

Demóstenes declarou que não tinha conhecimento de que Cachoeira, seu amigo íntimo por mais de 10 anos, praticava ações ilegais. No entanto, fez parte da CPI dos Bingos, iniciada em 2005, que indiciou Cachoeira por várias práticas ilegais.

O senador disse que fez lobby para vários laboratórios de Goiás perante a Anvisa. De acordo com Demóstenes, eram pleitos normais. No entanto, o senador Humberto Costa informou que relatórios encaminhados pelo órgão apontam apenas o senador interferindo unicamente para beneficiar o laboratório Vitapan, de propriedade de Cachoeira.

Não convenceu os senadores sobre o diálogo travado com Cachoeira sobre a aprovação de um projeto que passava a classificar o jogo do bicho como crime e não mais como contravenção. Na conversa ele alerta: "Isso, inclusive, te pega". O entendimento é de que, se ele alertou que a legislação pegava Cachoeira porque transformaria o jogo do bicho em crime, o senador sabia das atividades ilegais.

Além de vários presentes, Demóstenes acabou admitindo que Cachoeira também pagou o show pirotécnico utilizado na formatura de sua mulher.

O que ele disse Confira os principais pontos do depoimento de Demóstenes Torres no Conselho de Ética do Senado

Amizade com Cachoeira "Não sabia que ele era contraventor. Sim (fui traído). Acho que todo mundo que se relacionou com ele e não teve conhecimento (do atos ilegais) . Todos nós ficamos na pior situação"

Clube do Nextel "Hoje é fácil verificar que foi um erro. Eu não imaginava a dimensão que isso teria, mas não tinha a lanterna na popa e não tinha como adivinhar que isso seria utilizado com outras finalidades. Mas não é crime receber o rádio Nextel, e eu não sabia que outras pessoas tinham recebido"

Momento atual "Nunca sofri tanto na minha vida. Sou homem que tenho vergonha na cara. Fiquei um mês para entrar no Senado e ter coragem de olhar para os senadores. Ninguém pode usar o nome de Deus como estratégia de defesa. Eu sou um carola. Já era por conta da minha mãe, mas confesso que fiquei nesse tempo meio perdido"

Deus "Se eu resisti até a esse momento, para chegar aqui, é porque quero responder as dúvidas dos senhores. Tenho orgulho do que eu fiz, da profissão que ocupei, do meu trabalho. Só pude chegar aqui hoje porque redescobri Deus"

Avião "Utilizei aviões de diversas pessoas. Não de Cachoeira, porque ele não tinha avião. De empresários e amigos, utilizei. Vários, mas não de Cachoeira"

Gilmar Mendes "Tenho uma relação saudável com ele"

Procurador-geral da República "Ele (Gurgel) prevaricou. O processo penal é regido pelo princípio da obrigação. Não tem o procurador-geral o condão de dizer quando vai atuar. Mais dia, menos dia, ele vai ter que explicar por que fez dessa forma. A ação é sem amparo"

Alerta a Cachoeira "Num dos momentos, eu joguei verde em cima dele. Eu disse que tem operação conjunta da Polícia Federal com o Ministério Público que nunca se realizou e nunca foi cogitada. Ainda assim eu fazia esses testes com ele. Eu pergunto: que lobista sou eu que nunca procurei nenhum colega senador para aprovar jogo, para discutir sobre legalização de jogos? Eu peço que eu seja julgado pelo que eu fiz, não pelo que eu falei que iria fazer"