Título: Punição inédita
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Fonte: Correio Braziliense, 31/05/2012, Mundo, p. 24

O ex-presidente da Libéria Charles Taylor inaugurou ontem a lista de ex-chefes de Estado condenados e sentenciados por um tribunal internacional. Serão 50 anos de cadeia por 11 crimes de guerra e contra a humanidade cometidos em seu país e na vizinha Serra Leoa. A condenação é histórica não apenas por ser inédita, mas também pelo fato de que Taylor nunca esteve em Serra Leoa e, ainda assim, foi julgado por assassinatos, mutilações, recrutamento de menores, estupros e escravização de milhares de pessoas vítimas da Frente Revolucionária Unida (FRU), movimento guerrilheiro leonês armado pelo ex-dirigente liberiano em troca de diamantes.

Os juízes do Tribunal Especial da ONU para Serra Leoa (TESL), em Haia, levaram em conta “a gravidade e o impacto físico e emocional dos crimes cometidos contra a população civil”, segundo o texto da decisão. “Os mutilados terão de viver sempre de benefícios. As mulheres violadas sofrerão o estigma do abuso e os filhos que tiveram sofrerão com a rejeição. Os menores recrutados tiveram a infância roubada”, discursou o juiz Richard Lussick. Al-Hadji Jusu Jarka , leonês que teve os braços decepados por rebeldes da FRU, permitiu-se um desabafo: “Espero que seus atos o atormentem enquanto ele apodrece na prisão”.

Falando ao Correio por telefone, o advogado leonês Alpha Sesay, que atuou como monitor no julgamento, admitiu que várias vítimas podem sentir-se insatisfeitas. “Há pessoas desapontadas, porque esperavam a prisão perpétua. Mas ele já tem 64 anos, e essas cinco décadas na cadeia são toda a vida que lhe resta”, ponderou. Os juízes recusaram as atenuantes apresentadas pela defesa de Taylor, ignorando alegações de que o ex-presidente liberiano tem problemas de saúde, é casado, tem filhos e esteve exilado na Nigéria, cujo governo o entregou ao tribunal em 2006.

“As declarações das testemunhas perante este tribunal relataram como tiveram as mãos ou os pés cortados, para sinalizar que eram inimigos… Outra testemunha detalhou como arrancaram os olhos de uma mulher para que não reconhecesse seus estrupadores. Fatos de gravidade e impacto que não desaparecerão nunca”, reforçou o juiz Lussick na leitura da sentença. Taylor, segundo o magistrado, não aceitou a responsabilidade pelos fatos nem tampouco demonstrou remorso.

O advogado Alpha Sesay acredita que o julgamento representa um imenso passo para a defesa dos direitos humanos como valor universal que se sobrepõe a fronteiras. “De agora em diante, os líderes de governo sabem que a impunidade não é mais uma certeza”, afirmou. Para Connor Folley, especialista britânico em combate à tortura, membro do International Bar Association (IBA) no Brasil e pesquisador do Human Rights Law Centre da Universidade de Nottingham (Reino Unido), a condenação abre precedentes para outros julgamentos extraterritoriais. “Vale lembrar que ele era o presidente de um país africano”, observa Folley.” Será que o mesmo julgamento seria dado a autoridades de grandes potências, como George W. Bush e Tony Blair, pelas mortes que causaram com a guerra no Iraque?”, questiona.

Diamantes de sangue

Charles Taylor, cujo nome ficou associado aos chamados “diamantes de sangue”, formou-se em economia pelo Bentley College, nos EUA. De volta à Libéria, como funcionário público, foi acusado de desviar US$ 900 mil dos cofres do governo. Fugiu para a Costa do Marfim e retornou como líder da Frente Patriótica Nacionala. Oito anos depois, em 1997, venceu a guerra civil e governou o país até 2003.

Seu envolvimento com o tráfico de armas por diamantes teve um dos pontos de maior notoriedade quando presenteou com as pedras a top model Naomi Campbell, após um jantar em homenagem ao ex-presidente sul-africano Nelson Mandela. Naomi depôs sobre o caso em Haia e alegou ter doado as joias para o Fundo Mandela para a Infância.

Réus na fila

Ratko Mladic

O general, líder militar dos sérvios na Guerra da Bósnia (1992-1995), começou a ser julgado em 16 de maio no tribunal especial das Nações Unidas para a ex-Iugoslávia, em Haia (Holanda). Mladic, chamado de “carniceiro dos Bálcãs”, é acusado de crimes relacionados à “limpeza étnica” contra a população bósnia muçulmana. Em particular, responde pela morte de 8 mil homens, inclusive adolescentes, na cidade de Srebrenica.

Saif Al-Islam

O filho e porta-voz do ditador Muamar Kadafi, deposto na esteira das rebeliões da Primavera Árabe e linchado pelos rebeldes que o capturaram, herdou as acusações de crimes contra a humanidade cometidos pelo regime. Ele é réu em Haia, mas está sob custódia do novo governo líbio.

Omar Al-Bashir

O presidente do Sudão tem ordem de captura expedida pelo Tribunal Penal Internacional, o que obriga os países signatários a prendê-lo e enviá-lo para Haia caso o localizem em seu território. Al-Bashir é acusado de crimes de guerra na região de Darfur, onde enfrentou movimentos separatistas.

Bashar Al-Assad

O ditador sírio é candidato a tornar-se réu em Haia, se for deposto. As violações sistemáticas e em massa dos direitos humanos cometidas por seu governo contra opositores desarmados, assim como os bombardeios indiscriminados que vitimaram civis, já são objeto de discussão no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Mesmo que se mantenha no poder, caso seja processado ele ficará em situação análoga à do presidente sudanês.

Joias tingidas pela morte

Silvio Queiroz

Hollywood deu sua contribuição para tornar conhecido mundialmente o tráfico de diamantes africanos trocados por armas que sustentaram conflitos armados por longos anos. Serra Leoa, onde uma milícia rebelde fez o negócio de pedras por material bélico com o então presidente liberiano Charles Taylor, funcionou como uma espécie de gota d’água. Foi a guerra civil que levou os Estados Unidos, na época sob governo de Bill Clinton, a proibir explicitamente a aquisição de diamantes com origem na zona de conflito. Talvez por isso, foi o cenário escolhido para a trama do filme Diamante de sangue (2006), estrelado por Leonardo DiCaprio.

Bem antes, porém, o tráfico de pedras e outras riquezas minerais financiou por quase uma década inteira a guerrilha da União Nacional pela Independência Total de Angola (Unita), derrotada pelo esquerdista Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) na guerra civil que se seguiu à independência, em 1974. Entre 1992 e 1998, a organização vendeu diamantes que totalizaram um montante na casa dos bilhões de dólares, segundo documentado pelas Nações Unidas. Em 1998, o Conselho de Segurança aprovou duas resoluções (sob os números 1.173 e 1.176) que baniram o comércio dos “diamantes de conflito”.

A Unita foi finalmente derrotada três anos mais tarde. Mas o negócio, estabelecido na remota região de fronteira com o Zaire (hoje República Democrática do Congo), já tinha estendido seus tentáculos nas disputas étnicas e políticas que resultaram na queda do ditador Mobutu Sese Seko, em 1997. A essa altura, o foco do tráfico de pedras por armas havia se deslocado para a costa ocidental da África, onde se desenrolava desde o início dos anos 1990 a guerra que terminou por levar Taylor ao poder em Serra Leoa. No mesmo período, o fenômeno se repetiu na Costa do Marfim.