O globo, n. 31084, 14/09/2018. País, p. 4

 

Fora das ruas e dos vídeos

Jussra Soares

Tiago Aguiar

Flavia Junqueira

14/09/2018

 

 

Bolsonaro não tem condição de fazer campanha no 1º turno e gravar depoimentos

Em recuperação da segunda cirurgia, Jair Bolsonaro está fora das ruas e das redes sociais, e não pode nem gravar vídeos. Depois da segunda cirurgia a que o presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) foi submetido na última quarta-feira, as eleições no país passarão por uma situação inédita: hospitalizado em São Paulo, vítima de um atentado a faca, o líder das pesquisas de intenção de voto deverá ficar fora das ruas pelo menos no primeiro turno e ausente dos debates. Com dificuldades para falar, Bolsonaro não poderá, por ora, gravar vídeos para a TV e redes sociais.

A reviravolta na situação do candidato, que explorava na campanha imagens de recepções em aeroportos, obrigou o comando de sua candidatura a redefinir parte da estratégia política até a eleição. Embora apresente evolução clínica e nenhum sinal de infecção, Bolsonaro voltou para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), após um procedimento para desobstrução intestinal. Diante do quadro, familiares e aliados admitem que o candidato ficará impossibilitado de atuar diretamente na campanha.

Um dos filhos do candidato, Flávio Bolsonaro, em entrevista à rádio 97,1 FM, do Rio, fez um desabafo sobre a situação do pai, e disse que a orientação médica é a de que ele evite falar. “Ele não está conseguindo nem falar direito, então não pode ir para a internet para fazer transmissão ao vivo. A orientação médica é que nem fale, porque quando fala acumula gases e pode ocasionar mais dor ainda”, disse Flávio, acrescentando: “Ao que tudo indica, no primeiro turno não vai ter mais condições médicas de ir para a rua de novo. Praticamente impossível. A cirurgia de reconstituição do intestino dele vai acontecer daqui a dois meses ou mais, não tem como ir pra rua com a barriga aberta. É risco de infecção, é risco de arrebentar. É totalmente contraindicado”.

Sem multidões

Para manter a candidatura em evidência, os integrantes da campanha vão se dividir para cumprir as agendas e reforçar, nas plataformas digitais, o discurso de que Bolsonaro terá condições de retomar as atividades em eventual segundo turno. Além disso, a campanha pretende utilizar vídeos gravados antes da hospitalização. De acordo com um interlocutor do PSL, existe material inédito para ser usado até as eleições.

Um dos principais aliados de Bolsonaro, o presidente do PSL de São Paulo, Major Olímpio, verbalizou as dificuldades da campanha e previu a redução do número de simpatizantes nas ruas:

— Não temos essa capacidade de levar milhares de pessoas às ruas, como é uma característica e uma força do Jair Bolsonaro. Mas vamos levar a mensagem.

Antes do atentado, as decisões da campanha do PSL eram muito concentradas em Bolsonaro. Agora, diante da internação, a campanha não só procura alternativas para manter o candidato em evidência, como sofre com divergências internas.

Na véspera da cirurgia, a decisão do PRTB de consultar o Tribunal Superior Eleitoral sobre a possibilidade de o vice na chapa, o general da reserva Antonio Mourão, substituir Bolsonaro em debates na TV irritou a cúpula do PSL. O presidente do partido, Gustavo Bebianno chegou a desautorizar o PRTB, alegando que não tinha legitimidade jurídica para fazer esse questionamento.

A campanha usou ontem o Twitter de Bolsonaro para falar a seus eleitores. “Muita coisa vem sendo falada na tentativa de nos dividir e consequentemente nos enfraquecer. Não caiam nessa! Desde o início sabíamos que a caminhada não seria fácil, por isso formamos um time sólido e preparado para a missão de mudar o Brasil! Não há divisão”.

Ainda em relação ao estado de saúde do candidato, o hospital informou que ele está recebendo analgésicos e não teve complicações nas últimas horas. “Em razão do procedimento cirúrgico, o ex-capitão do exército se mantém em jejum e recebe alimentação por via endovenosa”, informaram os médicos.

O GLOBO ouviu especialistas em cirurgia no aparelho digestivo. Eles estimam que uma segunda operação, como aqueBol sonar o foi submetido,obriga o paciente aficar no mínimo entre 10 a 15 dias no hospital, e a recuperação pode levar levar um mês

Uma das orientações da equipe médica que acompanha Bolsonaro é a redução do número de visitas.

Segundo o cirurgião geral e oncológico Luiz Augusto Maltoni, o estado de saúde de Bolsonaro inspira cuidados:

—Um paciente submetido a duas cirurgias no intestino, num intervalo de uma semana, é um paciente grave, mesmo estando com todos os parâmetros vitais estáveis. É um paciente que inspira cuidados, porque tem potencial de complicação.

Cirurgia de Bolsonaro

Jair Bolsonaro foi diagnosticado com um quadro de aderência no intestino, como complicação da primeira cirurgia, feita semana passada, após o atentado

O que causou o problema

Em uma das três perfurações no intestino delgado, formou-se uma fístula (pequeno canal), que provocou inflamação e gerou o quadro de aderência

O que foi constatado

Um extravasamento de secreção intestinal acima do ponto de obstrução em uma das suturas realizadas para correção dos ferimentos causados pela facada

A operação

1 Os médicos identificaram um quadro de aderência nas paredes intestinais, quando tecidos grudam e provocam obstrução no intestino

2 O cirurgião abre a barriga, separa as alças do intestino que estavam grudadas e sutura as fístulas

3 É necessário limpar o intestino. Antes de fechar a barriga, os médicos procuram por outros pontos de obstrução

As cirurgias e suas possíveis complicações

1 O que foi feito na primeira cirurgia?

O primeiro passo em situações de trauma, como uma facada no abdômen, é controlar o sangramento e garantir a boa irrigação dos órgãos fundamentais do aparelho digestivo. Depois, é preciso resolver a lesão no intestino grosso, que tem fezes, cheias de bactérias. Tem que ser retirada a matéria fecal que derramou na cavidade abdominal, para evitar complicações. A costura do órgão deve ser feita de forma cuidadosa para que não haja risco de ela reabrir dentro da barriga, o que poderia causar infecção.

Em um caso como esse, o cirurgião pode aproveitar o corte causado pela lesão para instalar a bolsa de colostomia, para onde são direcionados fezes e gases. No caso do Bolsonaro, também foram corrigidas três lesões no intestino delgado, em um procedimento considerado mais simples. A secreção que sai do intestino delgado é chamada de suco entérico, e quase não tem bactérias. Na operação, é colocado um dreno e, pela cor da secreção, o médico sabe se há infecção.

2 Qual a diferença entre uma cirurgia de emergência e uma cirurgia programada?

Quando uma cirurgia como essa é programada, o cirurgião tem tempo de preparar o paciente, e as fezes são retiradas previamente para reduzir a chance de infecção. Além de ter que fazer o médico atuar mais rápido, uma facada pode fazer o material fecal sair do intestino pelo corte e contaminar todo o abdômen, causando infecção grave. No caso de Bolsonaro, também são complicadores o sangramento causado pela facada e a idade mais avançada (o candidato do PSL tem 63 anos), o que dificulta a recuperação. Em geral, um paciente sai do hospital depois de dez dias.

3 Quais as complicações possíveis em cirurgias desse tipo?

No pós-operatório pode haver uma aderência das paredes do intestino, por dois motivos. O primeiro é uma cicatriz interna: o corpo tenta se recuperar, e a cicatriz faz uma espécie de “dobra” no intestino na área onde houve o corte. Essa dobra pode prejudicar o trânsito intestinal, causando uma obstrução. Então é comum o paciente ter que operar novamente para desfazer essa aderência — em geral, o tempo é maior do que o passado por Bolsonaro.

A segunda forma de complicação é uma contaminação causada por material fecal, o que pode levar à irritação da membrana que reveste internamente as paredes do abdômen e os órgãos digestivos, chamada peritônio. Na área inflamada, parte do intestino “gruda” e dobra. A depender do ponto da aderência, ela pode obstruir a passagem das fezes pelo aparelho digestivo até a bolsa de colostomia. Pode haver retorno de secreção pela sonda nasogástrica e distensão do abdômen .

4 O que foi feito na segunda operação?

Normalmente essas cirurgias para corrigir a aderência são simples. O cirurgião refaz o corte na barriga, aspira as fezes e desfaz a aderência, colocando as alças do intestino em posição anatômica normal e volta a dar os pontos para fechar o intestino e a parede abdominal. Isso é importante para evitar uma inflamação no local do corte e para corrigir o trânsito intestinal obstruído. Na cirurgia, as fístulas foram suturadas e as aderências foram liberadas. Todos os pontos de possível obstrução foram tratados para reduzir a chance de novos problemas na região. A alimentação voltou a ser parenteral (endovenosa). A dieta será liberada quando se reestabelecer o trânsito gástrico. Após a cirurgia, Bolsonaro voltou à unidade de terapia intensiva (UTI), e apresenta uma evolução clínica estável, segundo boletim divulgado ontem pelo Hospital Albert Einstein.

5 Quanto tempo demora a recuperação em um caso como esse?

Médicos estimam que o paciente que passou pela segunda operação deve ficar de dez a 15 dias no hospital. Para ter alta médica e retomar as atividades cotidianas, leva pelo menos um mês. No caso de Bolsonaro, foi feita uma primeira cirurgia longa, há menos de uma semana. Uma nova cirurgia debilita o organismo. Há riscos de insuficiência renal, complicações pulmonares ou até da própria incisão. É preciso ver também como será a reação à reintrodução de alimentação oral.

Num pós-operatório sem complicações, o paciente se alimentando por via oral e com o fluxo intestinal normal pode receber alta em uma semana a dez dias. Com a reoperação, recomeça o prazo. De acordo com o cirurgião geral e oncológico Luiz Augusto Maltoni, é muito improvável que Bolsonaro possa ir para a rua antes do primeiro turno. Pode ser que, daqui a duas ou três semanas, ele já possa gravar um vídeo, mas tudo depende da evolução clínica.