O globo, n. 31084, 14/09/2018. Mundo, p. 22

 

Reforma reacende tensões

Janaína Figueiredo

14/09/2018

 

 

Prisão de general que atacou fim de privilégio deixa Uruguai inquieto

A decisão da esquerdista Frente Ampla, no poder desde 2005 no Uruguai, de enviar ao Parlamento um projeto de reforma do sistema de Previdência militar que reduz privilégios do setor reacendeu a tensão entre o Executivo e a cúpula das Forças Armadas. A iniciativa foi questionada publicamente pelo chefe do Exército, general Guido Manini Ríos, atitude que levou o presidente Tabaré Vázquez a ordenar sua detenção por 30 dias. A Constituição do Uruguai proíbe que militares opinem sobre decisões de poderes do Estado.

Atualmente, os militares são beneficiados com uma das aposentadorias mais altas pagas pelo Estado uruguaio. São US$ 580 milhões por ano, o que representa 1% do PIB (conjunto de riquezas produzidas pelo país). O total de recursos públicos destinado à Previdência atinge US$ 2,8 bilhões ou 4,9% do PIB. Membros das Forças Armadas são os únicos que, uma vez aposentados, recebem pensões superiores a seus salários.

Projeto agora na Câmara

Em geral, explicou ao GLOBO o deputado Jorge Meroni, da aliança governista, os aposentados ganham entre 70% e 85% da renda que tinham na ativa.

— Esta é uma reforma necessária e foi pensada nos moldes de outras já realizadas para o setor policial, os bancários, enfim, é adequar nossa Previdência aos novos tempos econômicos—disse o deputado.

O presidente da Frente Ampla, Javier Miranda, assegurou que “devemos defender Forças Armadas submetidas ao poder civil, que não podem se envolver em temas que não correspondem a suas funções”. Mas o general Manini Ríos, em missão oficial no México até o dia 18, se opôs ao projeto abertamente.

A resposta do Executivo foi rápida e abriu um novo conflito entre o governo e o mundo militar. Em 2006, em seu primeiro mandato, Vázquez destituiu o então chefe do Exército, Carlos Díaz, após ser informado sobre uma reunião entre o militar e o ex-presidente Julio Maria Sanguinetti (1985-1990 e 1995-2000). Desta vez, houve pressões para afastar Manini Ríos do cargo, mas o chefe de Estado acabou optando por uma prisão temporária.

O projeto já passo uno Senado e agora está na Câmara dos Deputados, onde tem boas chances de ser aprovado. Se isso ocorrer, não será retroativo. Ou seja, os militares já aposentados preservarão seus privilégios, em alguns casos, isso significa remunerações de até US $6.500. Um setor da Frente Ampla tentou incluir um tributo sobre aposentadorias já em vigência, mas não houve consenso. O objetivo do governo, insistiu Meroni, é equilibrar o sistema para poder, justamente, reajustar os salários mais baixos.

—Acho que ele (o general) atuou com boa-fé, respeitando a lealdade que devem ter as Forças Armadas, mas se enganou e deve ser aplicada uma sanção—explicou Vázquez, às vol tasco ma crescente desaprovação de seu governo (hoje de 50%, acima dos 40% de respaldo) e permanentes questionamentos sobre sua falta de autoridade.

A decisão de quem é hoje, na visão do historiador, escritor e pesquisador da Universidade da República Adolfo Garce, “um presidente enfraquecido e sem bandeiras significativas”, foi duramente criticada por setores da oposição, que acusaram Vázquez de humilhar o chefe do Exército. Em meio a tentativas de organização de marchas para repudiar a ordem de detenção, Manini Ríos pediu cautela a seus apoiadores.

Iniciativa inédita

Pouco depois de assumir o comando do Executivo pela primeira vez, Vázquez também estremeceu o delicado vínculo entre governo e Forças Armadas ao autorizara busca de restos de presos políticos desaparecidos em quartéis.

—Não me surpreendeu que a Frente Ampla se meta com a corporação militar, mas sim a severidade da sanção. Chama a atenção que coincida com um momento ruim da gestão de Vázquez —apontou Garce, autor de livros sobre os tupamaros, cujos ex-integrantes, entre eles o ex-senador e expresidente José Mujica (2010-2015), são peça central da aliança governista.

A tensão entre o governo e os militares está presente desde que a Frente Ampla assumiu o poder. Agora, o governo esquerdista avança com uma reforma que, pela primeira vez, pretende alterar o sistema econômico das Forças Armadas.

— Todos os governos estão mais limitados em matéria de recursos, e o Uruguai não é uma exceção — justifica Eduardo Botinelli, da empresa de consultoria Factum.

120%

do salário após a aposentadoria

É o que recebem atualmente os militares, em contraste com o máximo de 85% de outras categorias

580

milhões de dólares

É quanto custa por ano aos cofres públicos (1% do PIB) a complementação das pensões dos militares