O globo, n. 31091, 21/09/2018. Mundo, p. 25

 

Terra sem lei

Janaína Figueiredo

21/09/2018

 

 

Entre 2015 e 2017, estima-se que 8.200 pessoas foram executadas extrajudicialmente na Venezuela em ações de grupos policiais e militares que participam da implementação de sucessivos planos de combate à violência. Em nome deste combate, o governo do presidente Nicolás Maduro “contribuiu para o agravamento da crise com o uso desproporcional da força, incluída a letal, como resposta e suposta justificação de sua política de segurança”, alertou ontem a Anistia Internacional (AI).

Alvos preferenciais. Um grupo de jovens na favela de Petare, em Caracas, observa enquanto outro solta pipa: moradores de comunidades pobres são os mais atingidos pela violência do Estado
Em relatório intitulado “Isso não é vida. Segurança cidadã e direito à vida na Venezuela”, a ONG acusa o Estado venezuelano de “usar a força intencionalmente contra a população mais vulnerável e excluída socialmente”. A AI acusou Maduro e suas forças de segurança policiais e militares de violarem os direitos humanos de jovens dos setores mais humildes que, de acordo com a ONG, são “criminalizados por viverem nessa situação”. O governo, apontou a AI, deveria, pelo contrário, “aplicar políticas preventivas de controle da delinquência ajustadas a normas internacionais em matéria de direitos humanos”.

Foram dois anos de investigação em um dos países mais violentos do mundo. Atualmente, lembrou a ONG, a taxa de homicídios na Venezuela é de 89 casos para cada 100 mil habitantes, quase triplicando o indicador do Brasil (30 para cada 100 mil), que já é mais de quatro vezes maior do que a média mundial, de 7,5 mortes por 100 mil.

— As taxas que vemos são dramáticas. Nossa intenção foi dar visibilidade a um pesadelo que é diário para os venezuelanos e, sobretudo, para os mais marginalizados — disse ao GLOBO Carolina Jimenez, diretora de Investigações da AI para as Américas.

Para ela, “o governo Maduro é responsável pelo descontrole da violência institucional, que afeta, acima de tudo, aos jovens dos bairros mais pobres”.

—Para um presidente que diz ter como prioridade a redução da pobreza e a proteção dos mais humildes, é uma verdadeira contradição constatar a violência das forças policiais nos bairros pobres das cidades venezuelanas —afirmou Carolina.

Diante de um problema real (a violência), a resposta do governo, apontaram a diretora da AI e especialistas de ONGs locais, é “matar e aplicar a pena de morte, num país no qual essa condenação é proibida”.

—Nossos cálculos são mais assustadores do que os publicados pela AI. Estimamos que em 2016 e 2017 foram executadas 10.800 pessoas por forças de segurança —assegurou Roberto Briceño León, diretor do Observatório Venezuelano para a Violência (OVV) e professor da Universidade Central da Venezuela.

Este ano, a ONG calcula 17 execuções por dia.

— Os assassinados são supostos delinquentes que, como fica registrado em cada boletim, cometeram resistência à autoridade (o chamado auto de resistência no Brasil). Mas todos sabemos que, em muitos casos, são inocentes executados em suas casas —comentou o diretor do OVV.

Atualmente, disseram os especialistas, um dos grupos mais atuantes nas regiões pobres das cidades venezuelanas é a Força de Ações Especializadas (Faes), considerada por Briceño León uma espécie de “grupo de limpeza social”.

—Utilizam métodos similares aos implementados pelas antigas ditaduras, torturam e justificam suas atrocidades com um discurso centrado na necessidade de reduzir a insegurança — explicou o diretor do OVV.

Impunidade é altíssima

Nos últimos 17 anos, destacou o relatório da AI, foram lançados 17 planos de combate à violência. A implementação de todos estes planos, acrescentou Carlos Correa, da ONG Espaço Público, esteve e está em mãos de militares. Eles foram centrais neste processo de criminalização dos jovens e de qualquer pessoa que participe de protestos ou manifestações em repúdio à crise.

— O que vemos há vários ano sé a militarização da política de segurança cidadã. Na Venezuela, onde não existe Justiça, receber um tratamento adequado às normas internacionais por parte das forças de segurança é raro. A resposta do governo ao aumento da violência é matar —frisou.

“No ano passado, pelo menos 95% das vítimas de homicídios totais foram jovens e adultos entre 12 e 44 anos, que viviam nos bairros mais pobres do país”, indiciou a AI. A impunidade nos casos em que são violados os direitos humanos das vítimas alcança 92%.

— Os métodos usados pelo governo têm um alógica militar, e para reduzira criminalidade atacamos supostos inimigos, em muitos casos, pessoas inocentes. Calculamos que 25% dos homicídios que ocorrem no país são cometidos por forças de segurança. Nenhuma dessas pessoas é acusada ou tem um processo aberto pelos crimes cometidos —concluiu Carolina.