O globo, n. 31077, 07/09/2018. Artigos, p. 3

 

No Museu, minha ancestralidade

Flávia Oliveira

07/09/2018

 

 

À distância, por solitário, o luto é mais doído. Acasa consola. O incêndio que dizimou o Museu Nacional me alcançou numa madrugada insone doou trolado do Atlântico. Alonga noite de domingo no Brasil abocanhou o início da segunda-feira na Alemanha. Criado subúrbio, visitei na infância a Quinta da Boa Vista, o Jardim Zoológico, o Museu Nacional, tripé de um complexo cultural que, adulta, passeia chamar de Central Parkcarioca. Meninos do Rio amam apraia. E respeitam a Quinta, agora jazigo do que sobrou do velho palácio. A morte do museu trouxe tristeza aguda, como ad equem perdeu um parente próximo e querido.

Pelo acervo histórico e científico que guardava, era de ancestralidade a relação do Museu Nacional como Brasil. Tornou-se acasa de Luzia, o mais antigo esqueleto humano já encontrado em território nacional. Foi ela a primeira brasileira, uma jovem mulher com traços negroides, semelhantes aos de populações originárias da África e da Austrália. A história da primeira ancestral abrigada no museu me emociona em particular, porque também ali fui apresentada à minha linhagem materna. Em 2016, numa manhã de sábado de outono, aquelas de sol morno e céu muito azul, desembarquei na Quinta para receber o resultado do exame de DNA mitocondrial que revelaria minha etnia.

A iniciativa era parte do projeto “Brasil DNA África”, série de documentários sobre a origem (quase sempre desconhecida) de antepassados dos negros brasileiros. A equipe escolheu a sala onde ficavam trajes e peças sagradas de religiões de matriz africana. Lembro deter observado longamente um oxé, o machado de Xangô, orixá da justiça, que rege o ano da graça de 2018. O instrumento fora cedido ao museu pela Polícia Civil do Rio, depositária de um acervo de mais de 200 itens retirados de terreiros de candomblé criminalizados da Primeira República à Era Vargas. A apropriação é alvo de campanha por reintegração, que deu no documentário “Nosso sagrado” (2017), de Fernando Sousa, Gabriel Barbosa e Jorge Santana.

Naquele território dedicado à África, eu me soube descendente dos balantas, etnia que representa ao menos um quarto da população da Guiné-Bissau, também colonizada pelos portugueses. Ase quência genética tinha 100% de coincidência, numa trajetória que pode chegara dois mil anos. Significa que uma balanta trazida de África deu à luz uma menina, que pariu outra, que gerou outra, até minha avó, minha mãe, eu. Naquele 25 de abril de 2016, o Museu Nacional se tornaria guardião, não só das origens do Brasil, mas de minha ancestralidade particular. Sob o testemunho da minha única filha. No Palácio de São Cristóvão foi assinada a primeira Constituição brasileira, e revelada a minha própria. As balantas que virão vão saber da sala onde fomos apresentadas ao nosso passado, mas não terão a chance de entrar nela, não naquela. É esse o significado da frase do historiador, amigo de fé e colega colunista, Luiz Antonio Simas: “É o futuro dos herdeiros de Luzia que queimou ali”. E o meu também.

O fogo pôs quase tudo abaixo, mas antes dele o descaso de autoridades, governo após governo, e a indiferença do setor privado vinham solapando da população a experiência de autoconhecimento. Desde Juscelino Kubitschek, em 1958, nenhum presidente da República visitara o museu. Foi desprezo que se estendeu da ditadura militar a Michel Temer, passando por José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Ano passado, 289 mil brasileiros visitaram o Museu do Louvre e 192 mil o da Quinta, revelou a “BBC Brasil”. A comparação diz muito sobre o desinteresse da elite que viaja ao exterior pelo patrimônio nacional. Mas conta algo sobre o povo do Rio. É certo supor que a maioria esmagadora dos visitantes do Museu Nacional é carioca, diferentemente do perfil de frequentadores do gigante parisiense. Quem festejou com pompa os 200 anos da instituição foi a Imperatriz Leopoldinense, escola de samba de Ramos que fez do palácio enredo em 2018. Mais uma evidência da relevância, objetiva e simbólica, do subúrbio e do carnaval. Para o Rio. Para o Brasil.