O globo, n. 31077, 07/09/2018. Artigos, p. 10 e 11

 

A intransigência vem desde a eleição de 2002

Ascânio Seleme

07/09/2018

 

 

 Recorte capturado

O atentado contra o candidato Jair Bolsonaro coroa a magnífica onda de intolerância que atravessa o país desde a campanha presidencial de 2002. Inúmeras vezes militantes de PT e PSDB trocaram sopapos em nome de seus candidatos. Uma militante arrancou a dentada um dedo da mão de adversária com quem batia boca num bar do Leblon, no Rio de Janeiro.

A partir daí a intolerância cresceu e passou à etapa de contágio durante o mensalão. O início foi parlamentar, a falta de razoabilidade tomou conta do Congresso durante a CPI dos Correios e do julgamento do escândalo no Supremo Tribunal Federal. Em seguida ganhou as ruas e contaminou o Brasil.

Nas manifestações de 2013 ela apareceu mascarada e atendia pelo nome de black blocs. Durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff e ao longo do julgamento, da condenação e da prisão do ex-presidente Lula ganhou o ar sombrio do dilúvio. Uma caravana petista com a presença do ex-presidente foi objeto de atentado ao ser atingida por bala numa estrada no Rio Grande do Sul.

As redes sociais fundaram guetos em que os manifestantes mais bem qualificados eram aqueles que mais virulência empregavam ao atacar seus “inimigos”. Amizades de anos foram desfeitas. Achava-se que o fundo do poço havia sido alcançado. Não fora, como se viu ontem, em Juiz de Fora.

O atentado contra Bolsonaro aprofundou a crise de tolerância que dilacera o país. Lula, professor titular da cadeira “Nós contra eles”, precisa ser mencionado. Embora tenha sido objeto de atentado no Rio Grande do Sul, foi autor das mais importantes páginas de intolerância deste país.

O próprio candidato do PSL agora agredido alimentou essa onda com seu rotineiro discurso de ódio.

Há dois dias, num palanque no Acre, Bolsonaro disse que queria ter uma arma na mão para “metralhar os petralhas”.

A facada em Jair Bolsonaro, o tiro contra a caravana de Lula, o dedo arrancado a dentada, os guetos das redes sociais são ingredientes da mesma fogueira que arde no Brasil. Se opor à opinião do outro com intransigência pode mesmo acabar de maneira brutal e sinistra.

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Na ponta da faca, novo rumo da campanha

José Casado

07/09/2018

 

 

O atentado de ontem é o tipo de evento com peso específico para mudar o rumo de uma campanha eleitoral. Até chegar ao centro de Juiz de Fora, Jair Bolsonaro estava isolado no topo da disputa presidencial. Já há algum tempo estacionara no patamar de 20%, mas conservava ampla vantagem sobre os outros candidatos. Seu potencial de votos equivalia, praticamente, à soma dos adversários Marina Silva e Ciro Gomes, empatados em segundo lugar.

Mais notável, porém, era a dimensão da sua rejeição, acima de 40% —ou seja, o dobro da preferência eleitoral que possuía nas pesquisas Ibope e Datafolha.

Até então, o problema do candidato Bolsonaro era com o voto feminino. Ele moldou sua imagem num discurso arcaico, rudimentar e percebido como hostil às mulheres, a maioria (52%) no eleitorado. Conseguiu assim, pelo lado avesso, cristalizar na campanha presidencial o debate sobre a desigualdade de gênero no país.

Quando isso ficou evidente, os adversários iniciaram uma ofensiva anti-Bolsonaro focada no eleitorado feminino. Ele começou a perder em média 300 mil votos por dia, conforme pesquisas diárias que abastecem o PSDB de Geraldo Alckmin, do PT de Lula e do MDB de Henrique Meirelles.

No meio da tarde de ontem, Bolsonaro foi à esquina das ruas Rio Branco e Alfred, área preferida de políticos em campanha por causa da multidão em trânsito. Saiu amparado, exangue, vítima de uma facada confessada por Adélio Bispo de Oliveira, 40 anos, mineiro de Montes Claros, aparentemente maníaco de teorias conspiratórias.

Juiz de Fora tem histórico de conspirações políticas. Em 1964, abrigou as conversas dos conspiradores civis Carlos Lacerda e Magalhães Pinto. Dali partiu o general Olympio Mourão Filho com sua tropa. Seguiram-se 21 anos de ditadura militar — reverenciada por Bolsonaro.

A vitimização do candidato do PSL terá efeitos eleitorais. Por enquanto, a única certeza é que a ponta da faca esgrimida por um aluado levou a campanha para um novo rumo. Imprevisível.

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A visão dos especialistas

David Fleischer

Cláudio Couto

Carlos Melo

Alberto Carlos Almeida

07/09/2018

 

 

Um atentado nunca antes visto

David Fleischer

Professor de Ciência Política da UNB

O fato é que nunca tivemos um atentado assim no Brasil, o que causa grande repercussão internacional e piora ainda mais a imagem do país, já bem abalada com o incêndio recente do Museu Nacional. Por um sentido de simpatia, a aprovação dele deve subir e até sua rejeição deve ser reduzida. O problema é que agora deverá ficar fora de campanha. Sem a exposição nas ruas e em atos com apoiadores, ele pode se prejudicar, e uma saída poderia ser colocar na rua o seu candidato a vice, general Mourão.

 

A radicalização da política

Cláudio Couto

Professor de Gestão Pública da FGV

O efeito desse acontecimento vai depender de quem seja identificado como responsável pelo atentado em Juiz de Fora. Uma parcela do eleitorado enxerga uma martirização do candidato, outra pode argumentar que, como o deputado Jair Bolsonaro adota na sua campanha um discurso de enaltecimento da violência, todo esse discurso, calcado na apologia da violência, pode ter se revertido contra ele mesmo. As causas, claro, estão relacionadas ao processo de radicalização política.

 

O ápice do nós contra eles

Carlos Melo

Professor de Ciência Política no Insper

A gente vem numa escalada há tempos. Começou com o nós contra eles, depois os coxinhas versus mortadelas, tucanos contra petralhas, os tiros contra o ônibus da caravana de Lula e agora a facada em Bolsonaro. A martirização de candidato é evidente após esse episódio. Será suficiente para ele ganhar a eleição? Não sei. Em 2014, Eduardo Campos morreu num acidente aéreo e sua vice não venceu. Desta vez, acho que o fato causará menor comoção, porque não houve morte, e mais convulsão.

 

A eleição ainda está longe

Alberto Carlos Almeida

Autor do livro ‘O voto do brasileiro’

Casos como o de Bolsonaro costumam ter um efeito de mídia muito forte. Nas primeiras horas que se sucederam ao atentado isso ficou claro mais uma vez. Lembro do caso em 2004 da eleição na Espanha, que sofreu uma reviravolta após o atentado nos trens que matou quase 200 pessoas. A eleição aconteceu três dias depois do ato terrorista, e o partido conservador, que era o favorito, perdeu para os socialistas. Essa reviravolta se confirmaria se a eleição fosse mais adiante? Não sabemos.