Título: Retrato do escravo contemporâneo
Autor: Choucair, Geórgea
Fonte: Correio Braziliense, 04/06/2012, Ciência, p. 16

Belo Horizonte—O trabalho escravo está profundamente ligado à pobreza extrema e ao isolamento geográfico. Essa é a principal conclusão de um amplo estudo que produziu uma radiografia da exploração de trabalhadores no país, realizado por geógrafos daUniversidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade de São Paulo (USP).

O trabalho caracteriza pela primeira vez a distribuição, os fluxos e as modalidades do trabalho escravo no país.

"Mapeamos e localizamos as regiões onde estão os escravos e de que locais eles saem", diz o professor de geografia da Unesp Eduardo Paulon Girardi, um dos pesquisadores envolvidos, ao lado deHervé Théry, Neli Aparecida deMello e JulioHato, da USP.

A publicação, intitulada Atlas do Trabalho Escravo noBrasil, foi idealizada e lançada pela organização Amigas daTerra – Amazônia Brasileira e disponibilizada na internet, com 81 páginas.

Segundo o professorGirardi, o levantamento permite traçar o perfil típico das pessoas que trabalham em condições análogas à escravidão no país: migrante— principalmente do Maranhão, do norte do Tocantins e do oeste do Piauí—do sexo masculino e analfabeto funcional.Odestino maiscomum desses indivíduos são oMato Grosso e o leste do Pará.

No Brasil, ainda há a discussão entre o que distingue infração de trabalho e trabalho escravo. Girardi esclarece que uma pessoa está em estado de escravidão quando realiza serviço forçado, em condição de moradia degradante (muitas vezes em barracas divididas com animais) e não há nenhum tipo de pagamento pelo serviço.

É a chamada "dívida crescente impagável", geralmente comprada pelos fazendeiros por preços superiores aos de mercado.

O fazendeiro costuma oferecer alimentação, produtos de higiene pessoal e instrumento de trabalho a preços elevados.

Assim, o trabalhador passa a ter mais dívidas que salário a receber. "Isso costuma ocorrer em fazendas distantes", ressalta o professor. Esse isolamento dificulta a verificação de denúncias e é uma das principais características da escravidão contemporânea, segundo aponta o estudo. As grandes distâncias dos centros urbanos funcionam como recurso para impedir as fugas. "Emalguns casos, há tempo para o fazendeiro mascarar o escravo e não é feito o flagrante pela polícia ou pela fiscalização", acrescentaGirardi.

Setores De acordo com os registros de libertados pelo grupo móvel de fiscalização doMinistério do Trabalho desde 1995, a publicação revela que o trabalho escravo ocorre, sobretudo, em companhias siderúrgicas, carvoarias, mineradoras, madeireiras, usinas de álcool e açúcar, destilarias, empresas de colonização, garimpos, fazendas, empresas de reflorestamento e de celulose, agropecuárias, empresas relacionadas à produção de estanho, da área de citricultura, olarias, cultura de café, produtoras de sementes de capim e seringais.

O atlas apresenta ainda duas novas ferramentas: o Índice de Probabilidade de Trabalho Escravo e o Índice de Vulnerabilidade ao Aliciamento. Elas poderão auxiliar na implementação da legislação e orientar as políticas públicas de combate ao abuso. De acordo com os autores, a publicação pode ajudar o poder público a avaliar a probabilidade de ocorrência de trabalho escravoemregiões e setores da economia específicos, facilitando a prevenção e a fiscalização. Desde 1995, mais de 42 mil pessoas foram libertadas das condições de escravidão no Brasil, de acordo com dados daComissão Pastoral daTerra (CPT).

Entre os grupos mais numerosos de libertados em 2007, a cidade de Iturama, no TriânguloMineiro, se destaca.

Foram 374 trabalhadores. EmGoiás, a cidade de Brazabrantes registrou a liberação de 181 pessoas, e Itaberaí, de 87. Em2008, 421 pessoas foram libertadas em Quirinópolis (GO) e 244 em Porteirão (GO). As denúncias, segundo Girardi, podem ser feitas aoMinistério doTrabalho ouemcasas paroquiais.

Concentração Entre 1995 e 2006,emsomente cinco estados não houve resgate de escravos: Roraima, Amapá, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.Nas demais unidades da Federação, mesmo as mais ricas, o fenômeno está presente, embora a maior incidência tenha sido observada no Pará (7,62 mil pessoas), seguido pelo Mato Grosso (4,62 mil), pelaBahia (1,94 mil) e por Goiás (879). Enquanto no Pará há uma maior concentração de casos no leste do estado, nos outros três os flagrantes foram bastante distribuídos.

Segundo o atlas, outro indicador que pode ser relacionado a uma maior ou menor probabilidade para o recrutamento de trabalhadores que serão submetidos às condições degradantes é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que considera dadoscomoa renda per capita, anos de estudo e a expectativadevida ao nascer.Na escala nacional, a prática de exploração predomina nos municípioscommenorIDH.

Atividades relacionadas com a pecuária ou com o carvão vegetal, em certas regiões da Amazônia, estão entre os exemplos de risco muito alto de existência de trabalho escravo. Uma variável reveladora do avanço da frente pioneira na Amazônia é o grande número de homens sendo, por conta da necessidade de trabalho físico duro.

Eles costumam ter predominância até 50% superior sobre as mulheres no Centro-Oeste e na Região Amazônica.

O que diz a lei

A Lei n° 10.803, de 11 de dezembro de 2003, altera o artigo 149 doDecreto- Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940, e conceitua que o trabalho escravo é "reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto".