O globo, n. 31079, 09/09/2018. Rio, p. 15

 

Astro-Rei

Ana Lucia Azevedo

09/09/2018

 

 

A saga do Bendegó se torna símbolo da resistência do Museu Nacional

Solitário em meio às ruínas do Museu Nacional, o Bendegó, o maior meteorito do país,é maisqueu m gigante. Emerge como um símbolo de resistência e renascimento. Ele suportou as chamas que consumiram há uma semana a maioria das 20 milhões de peças do acervo e o palácio histórico. E isso não representa nem uma faísca na epopeia de quem sobreviveu à destruição de planetas, viajou pelo espaço, virou “pedra sagrada” no sertão de Canudos, seduziu naturalistas, enlouqueceu engenheiros, inspirou Machado de Assis, encantou um imperador e gênios como Einstein.

Bola de fogo no sertão

Inerte em suas cinco toneladas, o Bendegó simboliza a sobrevivência neste e em outros mundos, afirma acuradora da coleção de meteoritos do Museu Nacional, Elizabeth Zucolotto. Ao passar incólume à destruição à sua volta, o Bendegó evidenciou a riqueza que o Brasil reunira. O meteorito tem importância essencialmente histórica. Suac om posiçãoé comum, diz Zucolotto. —Ele é um tesouro da História—destaca o físico e historiador Ildeud e Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

O Bendegó nasceu de uma explosão. Como os demais meteoritos( nome quedosas ter oides ao caírem na Terra),éo que sobrou da destruição de um planeta, na infância do Sistema Solar. Viajou bilhões de anos pelo espaço, no cinturão de asteroides entre Marte e Júpiter, até escapar e entrar em rota de colisão coma Terra. Há milhares de anos, ele riscou o céu, como bola de fogo.

E, assim, muito antes desta terras e chamar Brasil, cai uno que viria a ser conhecido como o sertão da Bahia. Passou anônimo por milênios, até que em 1784 um menino chamado Domingos da Motta Botelho contou ao pai que descobrira uma pedra esquisita enquanto tocava o gado perto de Monte Santo. Chamado no sertão de Pedra do Bendegó, ele, na verdade, de rocha nada tem. É ferro maciço, com um pouco de níquel e pitadas de outros elementos.

O achado chegou aos ouvidos do governador da Bahia Rodrigues Menezes que, em 1785, ordenou que o levassem para Salvador. Ficou na vontade. Com muito esforço, os homens de Menezes colocaram o meteorito numa carroça puxada por 12 juntas de bois. Esta não se arrastou mais do que 180 metros até que o meteorito rolasse e fosse parar no leito do riacho Bendegó, onde permaneceria por um século. A notícia da estranha pedra se propagou. Em 1810, o astrônomo A.F.Mornayconst atou que era um meteorito. Os naturalistas alemães Carl von Martius e Johann von Spix, em 1820, em sua épica viagem pelo Brasil, deram um jeito de conhecer“apedra ”. Foram lá guiados por Domingos

Botelho, então já homem feito. Para coletar “um pedacinho” recorreram ao expediente de queimar o meteorito. Levaram mais de 24 horas para conseguir uma amostra, enviada para a Alemanha. —Entrei em desespero com o incêndio. Mas pelo acervo em geral. Não pelo Bendegó. Sabia que ele a gu enta ria.Lemb reide Martius eS pix. Não seria queimar por um ano iteque o abalaria. Mas fiquei assombrada porque ele parece ter emprestado resistência ao pedestal, até as informações que estavam ali escaparam —conta Zucolotto.

Notório apaixonado por astronomia, Pedro II só viria a descobrir que havia um meteorito fabuloso em seu próprio país quando visitou a Academia

de Ciências de Paris, em 1886. Mandou trazê-lo para o Rio. Em 1888, começou a segunda tentativa de transportá-lo. Para vencera caatinga, os engenheiros engendraram um plano entre a engenhosidade e a loucura. Construíram uma carroça que poderia tanto deslizar sobre trilhos quanto andar sobre rodas e prolongaram por 108 quilômetros uma linha férrea.

—Entro upara a história dos transportes do Brasil — diz o astrofísico do Observatório Nacional Ramiro de la Reza. A marcha de 113 quilômetros custou 126 dias, avançando menos de um quilômetro por dia, o que fez Machado de Assis escrever uma crônica em que usa a travessia do Bendegó para tecer críticas à classe política. Avinda do meteorito para o Rio foi seguida de uma forte seca no Nordeste, que fez o povo sertanejo clamar que a usurpação de sua pedra santa era o motivo do infortúnio. Virou mito associado a Antônio Conselheiro e ao arraial de Canudos, na região de Monte Santo. A história está no cordel “A saga da pedra do Bendegó”.

No Rio, o Bendegó teve vida de celebridade na primeira metade do século XX. Foi visitado por Einstein e Marie Curie. Lentamente, como o restante do museu, começou acair no esquecimento, até reemergir das cinzas na semana passada. —O Bendegó representa gênese e apocalipse. Espero que seja apedra fundamental para o renascimento do Museu Nacional —frisa Zucolotto.

Um tesouro em risco

Se o Bendegó é motivo de orgulho, o mais valioso meteorito do museu causa preocupação, pois não foi recuperado. Chamado angrito, eleéo mais precioso do Brasil. Recebeu o nome por ter caído em Angra dos Reis, em 1869. Avaliado em milhões, nada tem de vistoso. Pesa 1,5 quilo e tem menos de dez centímetros. Para um leigo, parece uma pedra comum. Mas tem uma composição extremamente rara, destaca o geólogo Álvaro Penteado Crósta, da Unicamp. Há 21 anos, dois americanos tentaram roubá-lo. Graças a Zucolotto, foram presos quando já estavam no aeroporto.

Eles haviam trocado o angrito por outra pedra, mas ela descobriu antes que fugissem do país. O angrito não era exibido ao público no Museu Nacional: estava trancafiado num cofre na sala de Zucolotto. Mas ela teme que ele seja roubado ou fique perdido, caso sua sala desmorone. No local, há milhares de pedrinhas enviadas por pessoas de todo o país — até o museu ser destruído, chegavam pelo menos três por semana — na esperança de que fossem meteoritos. Não eram, mas ela, por consideração, as guardava assim mesmo.

—Se a sala ruir, tudo ficará misturado e será difícil resgatar o angrito. Precisamos tirá-lo de lá logo — desespera-se a cientista, que já resgatou 30 dos 33 meteoritos em exposição no museu.