Título: Às portas da guerra civil
Autor: Craveiro, Rodrigo; Seixas, Maria Fernanda
Fonte: Correio Braziliense, 09/06/2012, Mundo, p. 22

Observadores da ONU chegam ao vilarejo de Mazraat Al-Qubeir, onde 78 pessoas foram mortas na quarta-feira. Repórter acompanha a comitiva e relata evidências de um crime dantesco. Homs e Damasco sofrem ataque

"Na minha frente, há um pedaço de cérebro; no canto, uma massa de sangue coagulado. Esta é uma casa em Mazraat Al-Qubeir." Assim o jornalista britânico Paul Danahar, da emissora BBC, descreveu o que viu ao chegar ao cenário do massacre de quarta-feira. Foi um dos primeiros relatos independentes de mais um crime supostamente cometido pela milícia Shabiha, leal ao ditador sírio, Bashar Al-Assad. Enquanto os observadores internacionais das Nações Unidas começavam a investigar a chacina, outras regiões do país enfrentavam uma escalada de violência. Homs, considerado o centro do levante, voltou a ser bombardeada de forma incessante. Em Damasco, o som dos tiros ecoou pelas ruas durante quase todo o dia. Também na capital, um carro-bomba matou duas pessoas.

Na iminência de uma guerra civil, a ONU subiu o tom. Na quinta-feira, o emissário especial Kofi Annan alertou para o risco de o conflito sair do controle e reconheceu o fracasso do plano de paz apresentado ao regime de Al-Assad. "Quanto mais esperamos, pior parece o futuro da Síria", declarou o ex-secretário-geral. Em reunião com a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, ontem, Annan pediu que o mundo aumente a pressão sobre Damasco. Por sua vez, o Ministério das Relações Exteriores brasileiro instou o governo sírio a cooperar com a missão de observadores da ONU (leia abaixo).

Uma saída diplomática parece cada vez mais difícil. Ontem, Washington, Londres e Paris manifestaram sua oposição à presença do Irã em um grupo de contato para mediar a crise. A participação de Teerã nas negociações foi defendida por Moscou.

Os registros da matança em Mazraat Al-Qubeir provocam a indignação da comunidade internacional. Danahar explicou que o acesso ao vilarejo, distante 20km a noroeste de Hama, exigiu a ajuda de uma equipe de reforço. Na véspera, o carro dos monitores da ONU havia sido interceptado pelo Exército sírio e atingido por disparos. Em seus primeiros relatos, o jornalista da BBC descreve um local aparentemente idílico. Uma comunidade rural, na qual as casas são separadas por plantações de milho e cercadas de colinas. Ao visitar as residências, porém, ele se deparou com detalhes sombrios, evidências de que ali houve uma chacina.

"A cidade cheira a carne humana queimada, existem piscinas de sangue no chão", descreveu. Em sua opinião, os "autores do massacre podem ter agido com violência gratuita, mas tentaram encobrir os vestígios da atrocidade de forma clara e calculada" — mesmo que as marcas dos pneus, que seriam de veículos militares, ainda estejam desenhadas pelo chão do vilarejo.

Na internet, em um vídeo postado no YouTube pela oposição, uma senhora, que teria perdido duas filhas no massacre, afirma que homens da Shabiha invadiram Al-Qubeir usando um tanque e três ônibus. Lá mataram os moradores a facadas e tiros. Também atearam fogo em muitas pessoas e crianças, ainda vivas. Segundo ela, apenas cinco ou seis pessoas do vilarejo sobreviveram.

Medo Em Homs, a 54km dali, as forças do regime intensificaram os bombardeios, provocando o medo de uma possível invasão. "A situação por aqui é péssima. Há um intenso tiroteio nos bairros de Al-Khaldyia, Al-Qusor e na Cidade Velha", relatou ao Correio, pela internet, a ativista Rama (ela pediu para não ser identificada). "As crianças choram porque estão assustadas. Estou em casa com minha família, no distrito de Al-Ghouta, e há morteiros sendo disparados em quase todas as ruas", acrescentou. Aos 21 anos, Rama sabe que o país enfrenta a ameaça de guerra civil. "Nós estamos amedrontados, mas ansiamos pela liberdade", emendou.

No subúrbio de Damasco, um carro-bomba explodiu, matando dois agentes de segurança. Os alvos seriam membros do Exército sírio que estavam dentro de um ônibus. Além do ataque, combates entre forças de segurança e rebeldes assustaram os moradores da capital. "O tiroteio está tão alto que é como se as balas estivessem atingindo a minha casa diretamente. Eu tenho medo de ir lá for a ver o que está acontecendo", disse um deles, em meio ao fogo cruzado, à rede de tevê Al-Jazeera. Escombros na cidade de Idlib (noroeste), causados por uma detonação

Análise da notícia

Somos cúmplices

O mundo é cúmplice dos massacres na Síria. Se crianças e mulheres são vítimas da inoperância irresponsável de um regime cada vez mais ilegítimo e impopular, isso se deve ao sistema arcaico das Nações Unidas. O Conselho de Segurança, criado para garantir a paz e a estabilidade dos países, é um fórum onde muitos têm voz, mas muitos poucos decidem.

Em meio a essa verborragia, Pequim e Moscou — aliados comerciais de Damasco — já avisaram que vetarão qualquer resolução que abra espaço para o uso da força na Síria. Preferem não ter seus interesses ameaçados, a despeito da morte de 13 mil pessoas.

A oposição defende uma intervenção militar estrangeira. Talvez não seja a solução, mas uma saída. A Síria é um país fragmentado, com várias etnias e grupos a caminho de uma guerra sectária aberta. Após a possível — mas improvável — queda de Al-Assad, os sírios precisarão seguir à risca um cronograma de transferência de poder, com destaque para o diálogo interno e a reconciliação com simpatizantes do Partido Baath.

Mas é preciso que o mundo tome medidas mais incisivas contra Damasco, talvez a adoção de sanções extremas. A inação do Conselho de Segurança pode levar o conflito a uma situação na qual seja tarde demais obter a paz. (RC)