O globo, n. 31128, 28/10/2018. País, p. 13

 

Fernando Haddad

Sérgio Roxo

28/10/2018

 

 

O petista ‘meio tucano’ que tenta alçar o próprio voo

Em fevereiro, um mês e meio antes de começar a cumprir pena por corrupção e lavagem de dinheiro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao discursar no ato de aniversário de 38 anos do PT, em São Paulo, recorreu à retórica habitual e se queixou de críticas, classificadas por ele como “campanha de ódio” contra o partido. Contou ainda que, ao indicar Fernando Haddad para disputar a prefeitura da capital em 2012, imaginou que ele, por sua formação acadêmica e “cara de paulista”, estaria imune ao antipetismo.

— É um pouquinho confundido com tucano —resumiu o líder petista, sobre o seu afilhado político. Neste segundo turno da disputa presidencial, o PT se valeu daquele mesmo raciocínio elaborado por Lula.

Acreditou que as características do rival, Jair Bolsonaro, e o perfil de Haddad, que sempre foi tratado com certa estranheza pelo partido, abririam um caminho quase natural para a formação de uma ampla frente democrática que aproximaria a candidatura do centro no espectro político do país.

Nas palavras de um petista, o importante àquela altura passou a ser alinhar os apoios dos partidos de esquerda e centro-esquerda porque as demais forças viriam “por gravidade”. Nessa lógica, não haveria necessidade de fazer concessões. O PT acreditou que transformaria a disputa num debate entre “civilização e barbárie”.

No primeiro turno, Haddad arrancou rapidamente nas pesquisas ao explorar o vínculo com Lula e o discurso de que o presidente Michel Temer levava o país à ruína. De sua cela em Curitiba, Lula previra que, junto à ascensão meteórica, viria uma elevação da rejeição do petista. O antídoto estaria justamente na construção de uma frente progressista. Só que a tal frente não vingou.

Nem a centro-esquerda se alinhou da maneira esperada. O PDT, que ficou em terceiro, anunciou apenas “apoio crítico” a Haddad, e Ciro Gomes viajou de férias para a Europa. Na volta, na véspera da eleição, Gomes apenas recomendou o voto pela democracia e contra a intolerância. De vários lados vieram apelos para que Haddad fizesse gestos mais concretos por apoio, que incluiriam uma autocrítica sobre erros cometidos pela legenda.

Uma semana depois do primeiro turno, um dos coordenadores resumiu o sentimento do PT: indagado especificamente sobre a exigência do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) de um mea-culpa do partido, esse petista argumentou que, se bem lida, a própria escolha de Haddad como candidato já indicava em si uma autocrítica da legenda. Ir além, com um reconhecimento público de falhas que levaram aos escândalos do mensalão e do petrolão, por exemplo, seria “ajoelhar no milho”, e poderia ser mal-entendido pela população nesta campanha acirrada.

Diferenças com a cúpula

Em artigos e entrevistas, intelectuais sugeriram que Haddad poderia atrair o centro se promovesse uma mudança radical em seu programa. Entre as ideias, estavam incorporar propostas de Marina Silva (Rede) e Geraldo Alckmin (PSDB) antes mesmo de iniciar conversas com os derrotados no primeiro turno.

O PCdoB chegou a defender que Haddad deixasse de lado as propostas da etapa inicial e apresentasse apenas um documento de compromissos básicos, como defesa da democracia, respeito à responsabilidade fiscal e combate à corrupção, que poderiam atrair os eleitores de centro sem depender da adesão de lideranças.

A coordenação de campanha rejeitou as sugestões. De acordo com um aliado, Haddad pensava diferente da cúpula partidária. Nunca chegou a externar o desejo de fazer um mea-culpa ou alterar radicalmente o programa de governo, mas pretendia, por exemplo, iniciar conversas com Fernando Henrique e Marina no dia seguinte ao primeiro turno.

Ao discursar na noite do dia 7, o petista ensaiou um gesto nessa direção ao falar em “unir os democratas do Brasil”, mas, diante das posições contrárias do comando da legenda, não foi além. Só viria a conversar com os dois na última segunda-feira. Segundo aliados do núcleo mais próximo do candidato, Haddad avaliava que, sob as condições em que foi escolhido para substituir Lula, faltando apenas 26 dias para o primeiro turno, não tinha capital político para impor a sua vontade. Reservadamente, pessoas próximas ao presidenciável entendem que houve falha por parte da cúpula do PT na leitura da conjuntura, com menosprezo do sentimento antipetista, principal combustível de Bolsonaro.

Também entenderam que o tom revanchista de uma carta de Lula sobre o segundo turno, divulgada na quinta, não contribuiu para a imagem que Haddad construía. Os petistas admitem que demoraram para entender a ofensiva de Bolsonaro nas redes sociais. Esse problema causou uma certa paralisia da campanha por quase dez dias após o primeiro turno, quando Haddad não fez atividades de rua. Só após a publicação de reportagem pelo jornal “Folha de S.Paulo” indicando que empresários teriam pago pela distribuição de mensagens antiPT por WhatsApp é que a campanha voltou a ter um alvo de ação. Haddad se irritou com a revelação e adotou tom agressivo nos seus discursos. O petista também insistiu, ao longo do segundo turno, em vincular Bolsonaro à defesa das torturas praticadas na ditadura militar.

A redução da vantagem do candidato do PSL na reta final foi atribuída a essa ofensiva e também a turbulências na campanha adversária. Bolsonaro teve que se explicar sobre afirmações autoriárias suas e de seu clã.

O candidato afirmou que varreria os opositores do país caso fosse eleito. Em uma palestra, seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, falou sobre o fechamento do STF. Nos últimos dias, embalada por um crescimento registrado nas pesquisas, a campanha do PT voltou a sonhar com a vitória. A declaração de voto em Haddad vinda de Joaquim Barbosa — ex-ministro do Supremo que condenou o PT no mensalão e hoje está filiado ao PSB —, animou os petistas.

Para um líder petista que era crítico da gestão de Haddad na prefeitura, a despeito de estranhamentos mútuos, o candidato a presidente finalmente “vestiu o macacão” partidário nesta campanha. Por pressão da cúpula, o presidenciável aderiu, na reta final, até a propostas de teor populista, voltadas ao eleitor mais pobre.

No PT, dúvida persiste

O político, que meses antes de disputar a reeleição para a prefeitura de São Paulo em 2016 adotou medidas impopulares, como a redução da velocidade máxima em vias da cidade e elevação da tarifa de ônibus, no último domingo anunciou que, se eleito, aumentará em 20% o valor do Bolsa Família e o preço do botijão de gás não passará de R$ 49.

A dúvida agora do partido é se o presidenciável continuará a “vestir o macacão”, incerteza que vale tanto para o cenário de vitória como de derrota. Se Bolsonaro ganhar, Haddad almeja poder construir a frente que fora desejada para a eleição, mas desta vez para atuar como um dos líderes da oposição a um governo do capitão reformado do Exército.

O candidato, ao menos neste momento, descarta assumir a presidência do PT. Se uma virada acontecer na reta final e Haddad vencer, as dificuldades com o partido podem ser grandes, já que haveria disputa por espaço no governo.