O globo, n. 31124, 24/10/2018. País, p. 8

 

A bancada da bala dá o primeiro tiro

Bernardo Mello Franco

24/10/2018

 

 

A bancada da bala não esperou o fim da campanha para dar o primeiro tiro. Ontem a tropa parlamentar selou um acordo com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Ele prometeu votar ainda neste ano um projeto que facilita a venda e a posse de armas no país.

Maia está em busca de apoio para continuar no cargo. Sua estratégia é agradar Jair Bolsonaro, favorito na corrida ao Planalto. O capitão tem uma ideia fixa: fuzilar o Estatuto do Desarmamento. Ele diz que a revogação da lei ajudaria a combater a violência.

“É um falso discurso”, contesta o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima. Para o sociólogo, a ofensiva contra o Estatuto vai aumentar as mortes provocadas por armas de fogo. “É como jogar gasolina numa fogueira que já está muito alta”, alerta.

De acordo com o Atlas da Violência, 71% dos homicídios registrados no Brasil em 2016 foram causados por armas de fogo. Felipe Angeli, coordenador do Instituto Sou da Paz, sustenta que o debate sobre o assunto não deveria ser ideológico.

“Não se trata de ser de esquerda ou de direita. Há um consenso científico de que o aumento da circulação de armas eleva a taxa de homicídios”, afirma.

Um estudo do economista Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), sustenta que a cada 1% de aumento no número de armas, o número de assassinatos salta 2%.

A ofensiva contra o Estatuto preocupa os pesquisadores, mas tem feito a alegria dos fabricantes de armas. Com o favoritismo de Bolsonaro, as ações da Taurus subiram mais de 500% desde janeiro. Em vídeos que circulam na internet, o candidato atua como dublê de garoto-propaganda da empresa.

Fernando Haddad errou feio ao repetir, sem checar, a acusação de que o vice de Bolsonaro teria torturado o músico Geraldo Azevedo na ditadura. Para quem reclama da enxurrada de fake news na campanha, foi um verdadeiro tiro no pé.

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Haddad reproduz acusação errada contra Mourão

Fernanda Krakovics

Bernardo Mello

Jussara Soares

Waleska Borges

24/10/2018

 

 

Candidato chama general de torturador e cita frase do compositor Geraldo Azevedo, que falou sobre o vice de Bolsonaro em show. Cantor pediu desculpas, e militar ameaça processar o petista: ‘Ele tem de checar o que é falso’

No momento em que se diz vítima da disseminação ilegal de fake news, o candidato do PT à Presidência, Fernando Haddad, reproduziu ontem uma acusação infundada contra o general Hamilton Mourão, vice na chapa de Jair Bolsonaro (PSL). Ao participar de sabatina promovida por O GLOBO, pelos jornais Extra, Valor Econômico e a revista Época, o petista afirmou que Mourão foi torturador durante a ditadura. Haddad baseou-se em declaração do cantor e compositor Geraldo Azevedo, que depois recuou.

—Defendo um projeto democrático, contra o que considero um retrocesso retumbante, que é a vitória do que chamo de rebotalho da ditadura. Não é nem da ditadura, é o que sobrou dos porões e que se expressa hoje não pelo Bolsonaro, que nunca teve importância. Mas o Mourão, por exemplo, foi ele próprio torturador. O Geraldo Azevedo declarou até em um show que foi pessoalmente torturado pelo Mourão —disse Haddad, na sabatina.

Após a repercussão da declaração do presidenciável do PT, o general Mourão disse que vai processá-lo:

— O Haddad tem que aprender a checar o que é falso e o que é verdadeiro. O camarada que não consegue distinguir isso não pode presidir o Brasil, não pode nem ser síndico de prédio. Basta olhar a minha idade e ver que em 1969 eu tinha 16 anos. Eu tenho filho e tenho neto, vou processá-lo. Ele repercutiu (a declaração do Geraldo Azevedo) sem observar a realidade dos fatos.

"Dinheiro sujo"

Ontem, Azevedo recuou da acusação contra Mourão, por meio de nota divulgada por sua assessoria. O documento afirma que o cantor “foi uma das vítimas da ditadura militar instaurada em 1964”, sequestrado e torturado em 1969 e 1974, mas isenta o vice na chapa de Bolsonaro. “Geraldo Azevedo se desculpa pelo transtorno causado por seu equívoco e reafirma sua opinião de que não há espaço, no Brasil de hoje, para a volta de um regime que tem a tortura como política de Estado e que cerceia as liberdades individuais e de imprensa”, diz o texto.

O senador Lindbergh Farias (PT-RJ), que não se reelegeu, foi um dos que compartilharam nas redes sociais o vídeo em que, durante um show, Azevedo diz que foi preso e torturado durante a ditadura militar.

— Esse Mourão era um dos torturadores lá — afirmou o músico, no palco.

Fernando Haddad, por sua vez, em entrevista após a sabatina, afirmou que havia dado ao público uma informação que recebeu de uma fonte fidedigna:

— Geraldo Azevedo realmente foi torturado e realmente disse que tinha sido torturado pelo Mourão. Eu me solidarizo com ele e todas as pessoas que foram torturadas — disse o petista, desculpando o cantor. — Elas estão sujeitas a esse tipo de confusão, porque foram alvo de violência extrema. O fato de ele ter soltado uma nota de que houve uma confusão foi uma oportunidade de esclarecer.

Desde a semana passada, o candidato do PT reforçou as queixas de que a campanha de Bolsonaro tem disseminado notícias falsas nas redes sociais. Haddad negou que tenha reproduzido um comportamento que condena:

— Eu dei a fonte. Eu não paguei empresário corrupto, com dinheiro sujo, para soltar essas afirmações na internet sem fonte. Falei com a cara limpa num programa para que fosse esclarecido. O Geraldo Azevedo teve a clareza de esclarecer. Mas fica aqui minha solidariedade com o compositor, porque ele foi vítima desse regime que eles (Bolsonaro e Mourão) tanto apoiam e inclusive enaltecem a ação da principal pessoa do regime, que é o (coronel Carlos Alberto Brilhante) Ustra.

Apesar do pedido de desculpa, Mourão disse que Azevedo agiu de má-fé:

— Eu entrei na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) em 1972, era cadete. Em 1969 eu era interno do Colégio Militar em Porto Alegre, com 16 anos. O tal do Geraldo Azevedo soltou nota dizendo que foi um equívoco. Não foi um simples equívoco, foi má-fé.

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Declaração abala tática petista de atribuir desvantagem a boatos

Pedro Dias Leite

24/10/2018

 

 

Ao repetir sem checar uma acusação grave, e que se provou falsa, Fernando Haddad cometeu um erro que abala sua principal estratégia na reta final do segundo turno. Nos últimos dias, o candidato do PT à Presidência vinha creditando a vantagem de Jair Bolsonaro a uma indústria maciça de fake news. A distância de 20 milhões de votos do capitão reformado seria, única e exclusivamente, pelas mentiras espalhadas por seus partidários. Como insistir nisso depois de propagar, ele mesmo, uma notícia falsa?

Agora, toda vez que Haddad reclamar do massacre de notícias falsas contra sua campanha, partidários do adversário do PSL já têm pronta a resposta: quem espalha fake news é o petista, que acusou, injustamente, o general Hamilton Mourão de ser um torturador durante a ditadura militar.

O erro estratégico denota, também, o grau de pressão e de exaustão no quartel-general petista. A acusação a Mourão foi deliberada e repetida por Haddad na sabatina promovida pelos jornais O GLOBO, Extra, Valor Econômico e a revista Época, com o objetivo de obter repercussão: “Deveria estar em todas as primeiras páginas amanhã”, disse o candidato.

Mas bastou uma busca no Google, assim que a frase foi dita, para mostrar a inconsistência da afirmação. Mourão tinha 16 anos à época em que o cantor Geraldo Azevedo foi barbaramente torturado —e as sevícias a que foi submetido são verdades comprovadas, é bom destacar. Uma acusação dessa gravidade, feita por um político que luta contra as fake news, jamais poderia ter sido feita com leviandade.

Em pouco mais de uma hora, a máquina de checagem do jornalismo profissional entrou em ação, e o erro estava esclarecido: Mourão afirmou que ainda estava no colégio, e Geraldo Azevedo disse que se equivocou e pediu desculpas pelo seu erro.

O equívoco do cantor pode ter acontecido de boa fé, ao contrário das fake news clássicas, criadas para desinformar. Mas, ao ter sua repercussão ampliada, contribuiu ainda mais para quem aposta na confusão de informações.

A situação eleitoral de Haddad antes do episódio já era delicada. As pesquisas praticamente não se alteraram desde o começo do segundo turno, com larga vantagem para Bolsonaro. Sua principal e última aposta dos últimos dias, de creditar a desvantagem a uma tática suja de fake news do adversário, sofreu um enorme baque com o erro da manhã de ontem.