O globo, n. 31120, 20/10/2018. Rio, p. 12

 

Luzia, a sobrevivente

Antônio Werneck

Denise Roque

20/10/2018

 

 

 Recorte capturado

 

 

Crânio de fóssil é achado sob escombros do Museu Nacional

Logo após o incêndio que destruiu o Museu Nacional, no início de setembro, pesquisadores do mundo todo e amantes da história, em geral, estavam inconsoláveis. Diante das chamas que consumiram a maior parte das 20 milhões de peças do acervo, o destino de Luzia —o fóssil humano mais antigo das Américas e um dos itens mais preciosos da instituição —parecia trágico. O clima de desesperança deu lugar ontem a uma grande comemoração. Sob os escombros, numa caixa de ferro parcialmente derretida pelo calor do fogo, dentro de um armário também devastado, Luzia foi encontrada.

O “milagre” não foi total. O crânio, que já havia sobrevivido a toda sorte de intempéries em seus 11 mil anos, não estava intacto. Luzia sobreviveu, mas despedaçada. Por isso, pesquisadores, que se depararam com os fragmentos de ossos dias atrás, só revelaram a boa notícia ontem, durante uma coletiva. Antes, as equipes precisaram montar um quebra-cabeça para ter certeza de que os pedaços pertenciam de fato a Luzia. Convicção que eles, agora, têm —já identificaram, visualmente, 80% do crânio. Luzia foi encontrada exatamente onde se esperava: na sala especial, no andar térreo, onde estava guardada, por questões de segurança, separada do resto da reserva técnica de fósseis, exposta no terceiro andar. O anúncio de que Luzia estava salva foi feito ontem pelo diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, e pela professora Cláudia Rodrigues

Carvalho, da equipe de funcionários que trabalham no resgate das peças. Muito emocionada, Cláudia revelou que o fóssil sofreu alguns danos, mas está em melhores condições do que se poderia pensar. — Parte da caixa (onde ele estava guardado) foi destruída. Não aguentou a ação do fogo, o que nós leva a crer que as chamas foram muito mais intensas do que a gente imaginava. Como parte do crânio já era reconstruído, a cola também derreteu e constatamos que parte dos fragmentos, que estavam originalmente unidos, se soltou. Também percebemos que alguma coisa foi afetada pelo fogo —disse Cláudia.

Sem prazo para restauro

Segundo ela, o fóssil poderá ser reconstruído, mas o Museu Nacional não anunciou ainda quando terá início o trabalho de restauração. Por enquanto, o próximo passo será continuar investindo na limpeza e estabilização dos ossos :

— A gente imagina que, à medida em que for avançando o trabalho de limpeza e estabilização, vamos conseguir chegar a 90% de identificação. Talvez até um pouco mais. Temos que acabar também de fazer toda a higienização do material —explicou Cláudia, lamentando que ainda estejam desaparecidos outros pedaços de Luzia, como dois fragmentos de fêmur, um de tíbia, ossos do braço e da bacia, todos expostos no terceiro andar. Encantado com a preciosidade resgatada das cinzas, Kellner fez questão de levar fragmentos do crânio de Luzia, acondicionados numa caixa plástica, para mostrar aos jornalistas.

— Dentro dessa tragédia, temos momentos de alegria. Luzia viveu maus tempos, mas está viva como o Museu Nacional. Agora ela precisa de uma nova casa — afirmou Kellner, sem revelar onde ficará Luzia até sua restauração.

A descoberta de Luzia reacendeu em todos a esperança de que novos itens sejam recuperados.

—Nós temos o desafio de recuperar outras “Luzias”. Estamos focado no resgate do acervo —diz Cláudia. As equipes também já acharam ossos de dinossauro, que precisam ser analisados. Uma das hipóteses é que eles sejam do Maxakalisaurus topai, um gigante herbívoro de 13 metros, que vivia na América do Sul há 80 milhões de anos.

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A saga da primeira brasileira, que se recusa a desaparecer

Ana Lucia Azevedo

20/10/2018

 

 

Técnicas moleculares podem ser usadas na restauração

Ao ter o crânio descoberto em meio às ruínas do Museu Nacional, Luzia, a moça do Cerrado que se transformou num símbolo da brasilidade, provou que o seu destino jamais foi a escuridão. Ela morreu já faz 11.500 anos, mas parece se recusar a desaparecer. Tinha cerca de 20 anos quando sucumbiu — nunca se saberá a quê. Membros de seu povo depositaram o corpo numa fenda de uma caverna em Lagoa Santa, Minas Gerais. Ficou por lá até 1974, quando foi descoberta por arqueólogos. Voltou à luz por um tempo, mas acabou esquecida. Porém, graças ao trabalho do bioantropólogo Walter Neves e do arqueólogo André Prous, Luzia retornou. Desta vez, sob holofotes. Virou celebridade da ciência mundial, em 1998.

Seu crânio, o mais antigo já datado nas Américas, iluminou a saga do povoamento do continente. E promoveu uma revolução na arqueologia. O crânio tem características negroides, diferentes das dos índios que povoaram depois o continente. Características como o nariz mais largo e os olhos grandes fizeram Neves propor a teoria de que ela e seu povo eram de uma onda mais antiga de povoadores. O povo de Luzia, ou de Lagoa Santa, teria desaparecido há cerca de sete mil anos.

Mundialmente famosa mas de novo meio esquecida, Luzia estava desde então numa caixa no Museu Nacional. Os 20 anos do estudo de Neves e Prous haviam passado quase em branco este ano, quando em 2 de setembro, um incêndio destruiu o museu e se temia que Luzia estivesse perdida. Mas ela, agora, mais uma vez, reapareceu. Restaurar o crânio e o que sobrou do corpo, porém, não será trivial, explica Mercedes Okumura, chefe do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP e ex-pesquisadora do museu. Okumura, que hoje dirige o laboratório onde Neves fez seu estudo pioneiro, diz que o mais precioso testemunho da pré-história do país precisará da ajuda de técnicas modernas para que ainda possa ser estudada.

A cientista acredita que o achado foi possível porque a cópia digital de Luzia permite identificar os fragmentos e saber quais ainda faltam. Os ossos podem ter sofrido diferentes graus de danos. Luzia não é um fóssil de fato porque os ossos não foram completamente mineralizados. Ela não é de pedra. É um esqueleto antigo e, como tal, resiste melhor ao fogo do que um corpo moderno, com mais material orgânico e, portanto, inflamável. Porém, a falta desse mesmo material a torna mais vulnerável à fragmentação. Okumura observa que técnicas moleculares e de análise de isótopos, por exemplo, podem ajudar a restaurar sem afetar a estrutura de Luzia. Será, porém, um trabalho longo, detalhado e delicado.

— Ela ainda tem muito a contribuir, como objeto de estudo e como ícone do país e da reconstrução do museu —afirma.

Luzia, mais uma vez, mostra que não vai desaparecer.