Título: Nada mais foi como antes
Autor: Kiefer, Sandra
Fonte: Correio Braziliense, 24/06/2012, Política, p. 2

Nem tudo era luta e sofrimento nos anos 1960, período em que Dilma militou na esquerda contra a ditadura militar. Amigos guardam momentos da então jovem estudante secundarista, com seus 17 anos, 18 anos, com o uniforme do Colégio Estadual Central, na capital mineira, na época em que dava status estudar em escola pública. "A gente era tão amigo que tinha liberdade de ir um para a casa do outro "assaltar" a geladeira", recorda o compositor Márcio Borges, então estudante e um dos fundadores do Clube da Esquina. A casa de dona Dilma Jane, mãe da presidente, ficava na Rua Major Lopes, no bairro Sion.

A turma de amigos se encontrava todos os dias depois da aula, para conversar. E toda semana tinha festinha na casa de alguém. "Eu e Dilma costumávamos ser escalados para recolher um pedaço de peru na casa de um, o resto da maionese do almoço na do outro e assim por diante", revela o músico. Já a bebida limitava-se a vodca com refrigerante de laranja (hi-fi) e cuba libre, bem fracos. "Os drinques eram a bebida da juventude da época. Não existia cerveja em lata, só a garrafa que vinha no casco escuro, preto ou verde", completa. Ele morava com a família no Edifício Ingleza Levy, no Centro, antes de mudar para Santa Tereza, onde mais tarde iria fundar o Clube da Esquina com Bituca (Milton Nascimento) e os irmãos Lô e Marilton.

Com grandes olhos verdes e cabelos enrolados, Marcinho fazia o melhor que podia tentando conquistar Marisa, grande amiga de Dilma na época do colégio. Ele conheceu Dilma na pensão da Odete, na Rua Curitiba, quase esquina com a Avenida Amazonas, que servia feijoada de graça aos sábados e funcionava como aparelho da Organização Revolucionária Marxista-Política Operária (Polop). "Passei a frequentar reuniões dos militantes políticos e comecei a sacar que havia algo além dos anos dourados e das festas todos os dias. Havia a turma mais politizada da Dilma e uma outra, de músicos, que me foi apresentada pelo Bituca. Enquanto uma turma estava na clandestinidade, a outra sonhava com os holofotes. Fiquei dividido", admite.

Ideais Segundo revelou no livro Os sonhos não envelhecem, que fará parte do museu Clube da Esquina até 2014 na Praça da Liberdade, Marcinho passou a bater altos papos com Dilma e o namorado, que mais tarde viria a ser seu primeiro marido (e hoje mora na Nicarágua, depois de fugir do país no sequestro de um avião), o jornalista Cláudio Galeno. "Galeno era muito bom nas cartas: raciocínio rápido e destreza no manuseio. Era um dos tais jovens dispostos a pagar com a vida as chamadas causas revolucionárias." "Tenho hoje o maior orgulho de ver uma pessoa da nossa turma na presidência. Ela teve a coragem que eu não tive e pagou caro por seus ideais", completa.

Em uma tarde de sábado, Márcio, Dilma e Bituca tinham ido visitar um colega do Imaco, no Parque Municipal. De repente, ele pediu a Bituca para mostrar a Dilma uma música nova (leia letra completa ao lado). Segundo a explicação do autor, a canção Vera Cruz representava o amor à mulher e ao mesmo tempo à pátria. A letra era escrita por meio de metáforas para escapar da censura da época. "Lembro dessa cena com emoção. Nós nos abraçamos e relembramos os momentos felizes vividos juntos", explica.

"Ainda que não existisse mais um único caso de tortura, o que não é verdade, ainda assim seria importante permanecer vigilante" José Francisco da Silva, conselheiro do Conedh-MG

~A gente era tão amigo que tinha liberdade de ir um para a casa do outro "assaltar" a geladeira" Márcio Borges, sobre a amizade com a presidente Dilma Rousseff nos anos 1960

Memória Reencontro em 2010

Quase 40 anos mais tarde, o melhor momento da juventude daquela turma seria reprisado, em abril de 2010, pouco antes do início da campanha vitoriosa à presidência. Havia muitos anos que Márcio e Dilma não se viam. A então ex-ministra da Casa Civil mandou a secretária ligar para o amigo e convidar para um café na Livraria Mineiriana. "Fui sozinho. Ela chegou em um vestido azul, bonito e jovial. Foi batendo o olho no ambiente e se dirigiu à minha mesa. Havia anos que eu não a via. Ela disse que havia me reconhecido pelos olhos", lembra Márcio. Depois, durante a conversa que se prolongou tarde a dentro, Dilma comentou sobre o episódio da música inédita. "Confessei que me lembrava da melodia, mas não do nome da canção. Ela pediu para eu cantar, uma a uma, todas as músicas da época. Reconheceu já o primeiro verso de Vera Cruz. Passamos a tarde inteira tomando café e relembrando nossas histórias. Depois, ela foi embora no carro chapa branca. Eu desci a Rua Paraíba a pé, chorando feito um menino e relembrando trechos de nossa linda juventude", concluiu.

Resgate histórico

"O conjunto dos relatos das vítimas de tortura em Minas (916, ao todo) serviu como um resgate do período da ditadura no país", elogia José Francisco da Silva, secretário adjunto, nomeado pelo então governador Itamar Franco, em 2000, para a missão de instalar a comissão dos Direitos Humanos e abrir os arquivos da ditadura em Minas. O incansável Chico, como é conhecido o ex-militante político da antiga Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da Rua Carangola, não desistiu de denunciar a prática da tortura, agora não mais a presos políticos, mas a presos comuns. Não apenas nas prisões, mas também nos asilos, hospitais psiquiátricos, centros de acolhimento a adolescentes infratores.

"A prática da tortura é intolerável", alerta José Francisco, que ocupa uma cadeira como conselheiro do Conselho Estadual de Direitos Humanos (Conedh-MG). Em parceria com o atual presidente do conselho, o advogado Emílcio José Lacerda, propõe a criação de um mecanismo de prevenção a tortura e métodos degradantes em Minas. A proposta, já apresentada à Sedese, prevê visitas relâmpagos a estabelecimentos que tiverem sido alvo de denúncias de tortura, por equipe composta de psicólogos, arquitetos, médicos, com conhecimento e autonomia suficiente para flagrar abusos e interditar o lugar. (SK)

Lembrança

A letra de Vera Cruz, música de Márcio Borges e Milton Nascimento, que os dois mostraram a Dilma no dia em que a compuseram. Quase 40 anos mais tarde, Borges cantarolou para a então candidata a presidente.

Hoje foi que a perdi, mas onde já nem sei Em Vera me larguei e deito nesta dor Meu corpo sem lugar Ah, quisera esquecer a moca que se foi De nossa Vera Cruz e o pranto que ficou Do norte que sonhei, das coisas do lugar Dos mimos me larguei, correndo sem parar Buscar Vera Cruz nos campos e no mar Mas ela se soltou, no norte se perdeu Se ela em outra mansidão um dia ancorar E ao vento me esquecer Ao vento me amarrei e nele vou partir Atrás de Vera Cruz Ah, quisera encontrar A moça que se foi do lar de Vera Cruz E o pranto que ficou Do norte que perdi das coisas do lugar