Título: Alerta na vizinhança
Autor: Tranches, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 24/06/2012, Mundo, p. 23

Destituição de Fernando Lugo testa a maturidade institucional na América Latina, ainda assombrada pelo ciclo autoritário

Com as cicatrizes recém-fechadas do ciclo de ditaduras militares nos anos 1960 a 1980, a América Latina acendeu o sinal de alerta com o processo fulminante que resultou no impeachment do presidente Fernando Lugo, no Paraguai. A reação de nações nem sempre alinhadas ideologicamente, segundo especialistas consultados pelo Correio, testou a maturidade das instituições democráticas na região. E, apesar das diferenças de tom, os países vizinhos mostraram prontidão para reagir a uma situação que voltou a projetar a sombra do autoritarismo — como na deposição do presidente Manuel Zelaya, de Honduras, há três anos, ou na tentativa de golpe contra Hugo Chávez, da Venezuela, em 2002.

Os chanceleres da Unasul falam para a imprensa em Assunção: reação rápida demonstrou articulação e solidariedade democrática

Também os analistas divergem na hora de definir os acontecimentos no Paraguai, mas eles concordam quanto à capacidade de mobilização demonstrada no âmbito da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e do Mercosul. Para Mário Sérgio de Moraes, estudioso do ciclo ditatorial na região, a destituição de Lugo foi "nitidamente" um golpe de Estado, a despeito de o Congresso paraguaio ter invocado prerrogativas constitucionais. Na avaliação de Moraes, autor de O ocaso da ditadura – caso Herzog, o episódio destoa de uma "série de conquistas em termos de direitos políticos" vivida na vizinhança nas últimas décadas. "Isso acontece em um país onde as raízes autoritárias ainda possuem um certo alento dentro da sociedade", afirma o pesquisador. Ele, porém, não vê indícios de que países mais desenvolvidos possam apoiar soluções golpistas. O economista argentino Juan Soldano, especialista em Mercosul, lembra que o próprio bloco do Cone Sul conta com o Protocolo de Montevidéu, um mecanismo quase automático e imediato de "defesa da institucionalidade democrática" diante de um eventual golpe de Estado contra o governo de qualquer país-membro. Mais recentemente, a Unasul adotou um sistema análogo. "Eu diria que (o protocolo) colocou uma barreira à possibilidade de golpes no Mercosul, e em extensão na Unasul, e foi emblemático no sentido de não admitir esse tipo de processo", afirma.

Soldano, porém, mantém dúvidas quanto ao que ocorreu no Paraguai. Ele pondera que, em tese, a manobra do Congresso não caracterizaria um golpe, por se apoiar nas normas constitucionais do país. De toda maneira, ele reconhece a situação de instabilidade política que despertou a preocupação dos vizinhos, especialmente daqueles mais alinhados ideologicamente, como Bolívia, Equador e Venezuela. A comitiva de chanceleres da Unasul enviada ao Paraguai foi integrada por governos que há não muito tempo tiveram entre si diferenças políticas acentuadas. "A Colômbia e o Chile, por exemplo, estão mais distantes ideologicamente (do Paraguai), mas isso não quer dizer que não se preocupem com um país que não se caracteriza historicamente pela estabilidade política", afirma Soldado, lembrando as turbulências vividas ainda nos anos 1990.

Apesar de a destituição de Lugo ter sido consumada, avalia Moares, a resposta da região mostrou que os diversos governos estão prontos para defender uns aos outros: "Os países criaram uma certa irmandade". Na interpretação do estudioso, isso pode se relacionar a uma consciência de que golpes de Estado podem ter um efeito dominó, se forem tolerados. "Esses países têm os mesmos problemas: a existência dos latifúndios, da desigualdade e de sociedades ainda administradas sob o ponto de vista financeiro."

Recém-saídas de regimes autoritários, as nações latino-americanas ainda vivem paradoxos a serem analisados. Para Soldano, persiste uma relação muito mais formal com a democracia do que a vivência plena do regime democrático. "Mas acho que existe, definitivamente, uma concepção democrática em toda a América. Vai ser muito difícil derrubá-la e voltar a algum esquema parecido com o que ocorreu nos anos 1970 e 1980", afirma o argentino. "Houve uma mudança nas condições internacionais e situações desse tipo já não são admissíveis."