O globo, n. 31102, 02/10/2018. Artigos, p. 3

 

A maldição do plebiscito

Carlos Andreazza

02/10/2018

 

 

Bolsonaro é um fenômeno eleitoral; agente novo neste arranjo político-eleitoral. Isso não significa que haja alguma novidade na dinâmica do jogo travado nesta eleição. Mais uma vez, embora sob a velha fantasia da disputa a presidente, vai-se às urnas para votar num plebiscito.

Tem sido assim desde 2006, ano da reeleição de Lula e o primeiro em que o Bolsa Família se expressou como ativo eleitoral, motor disparado pela máquina do Estado em prol de um projeto de poder e faca a partir da qual o mapa eleitoral se cindiria até a cristalização; a que fixou a porção eleitoral lulopetista, alicerce à projeção de que o candidato de Lula marcharia seguro até o segundo turno em 2018.

Desde 2006, vota-se a presidente para chancelar ou não o modelo de Estado apregoado pelo lulopetismo. Uma das consequências desse caráter plebiscitário, claro, é a expansão do sentimento antilulopetista, mas sobretudo o estabelecimento desse ânimo como o gatilho para formação de voto. Aqueles a favor do que executavam os petistas votaram pela continuidade. Os contrários, mobilizados pela rejeição, no PSDB. Este, um voto politicamente precário, por falta de opção — o que se verifica na inexistência de quem tenha escolhido Alckmin, Serra ou Aécio pelo que propunham.

O PSDB, porém, não entendeu. Avaliou que o lugar de receptáculo do voto antilulopetista seria para sempre seu apenas porque o ocupara historicamente — e, enquanto 60 mil brasileiros eram assassinados por ano, foi falar de parlamentarismo na TV. Enquanto os tucanos afundavam na incompreensão do momento político, soberbos demais para notar a rebelião popular contra a agenda elitista, Bolsonaro encaixava seu trilho de ascensão. Eleito deputado federal, em 2010, com 120 mil votos, alavancou-se a ser o mais votado do Rio em 2014, com 465 mil votos. A explicação é simples: encarnara — organicamente — o antilulopetismo, batendo na corrupção do PT e denunciando os valores que o partido desdobrava. Seu primeiro salto competitivo deu-se ali, ao tomar para si o espaço antilulopetista.

Por que Bolsonaro é jogador nesta eleição e Alckmin, não? Porque conseguiu se inscrever no campo simbólico do plebiscito sobre o lulopetismo. Por isso escrevo que é um fenômeno eleitoral que não altera a natureza plebiscitária da eleição: porque controlou uma peça no tabuleiro, peça já existente, sem afetar a dinâmica do jogo. Quem incrementou a dinâmica do plebiscito foi Lula, a estratégia de Lula: não mais uma consulta sobre o modelo de governo lulopetista, mas acerca da condição prisional do ex-presidente, se seria ou não um perseguido político.

De 2016, com o impeachment de Dilma e a derrota petista nas eleições municipais, saiu-se com a ideia de que o PT fora destruído, leitura equivocada cuja falha estava em considerar que a morte do partido, se havida, seria também a de Lula. Para além da subestimação do lulopetismo, aquele Brasil de 2016 deixaria de existir logo, com a escalada do ativismo judicial jacobinista celebrado pela imprensa, exemplificado pelo súbito lava-jatismo seletivo de Janot e materializado no golpe dos flagrantes armados por Joesley. Era a decretação pública, autorizada pelo STF, do processo de sindicalização das instituições por meio do qual procuradores se tornaram justiceiros.

A consequência seria imediata: a criminalização da atividade política. Ali, pois, meados de 2017, deram-se os dois movimentos que afinal definiriam o caráter da polarização deste próximo plebiscito presidencial.

O primeiro, a revitalização de Lula. A política chafurdada criara as condições para que ele concebesse a narrativa de vitimização. Se os partidos são organizações criminosas, e os políticos estão a serviço da corrupção, não terá sido uma injustiça o impeachment de Dilma? Se todos os políticos são bandidos, melhor será aquele com quem fui feliz. A população foi feliz com Lula. Ninguém lhe atribui a recessão que viria depois. A crise? Obra de Dilma e Temer. É ali, a partir da debacle de Aécio, que arrastaria consigo o PSDB, e da paralisação do governo Temer, estigmatizado por denúncias ineptas, que Lula se recolocaria na mesa para dar as cartas.

O outro movimento foi o segundo salto competitivo de Bolsonaro. Em 2017, ele já detinha o estandarte do antilulopetismo, e então viu diante de si, com a política na lama, a chance de incorporar também a figura anti-establishment, da qual se assenhoraria.

É o que nos trouxe até aqui. A sequência de forjas que cunhou as faces do novo plebiscito, o mais irracional, sobre o lulopetismo, e cuja temática não poderia ser mais pobre: mitologias redentoras, revanche contra revolta, modalidades de autoritarismo, combate à corrupção (longe de ser o maior problema) e desprezo à política.

Aqui estamos. Para lá iremos. Parabéns.