Título: Dois gabinetes
Autor: Luna, Thais de
Fonte: Correio Braziliense, 26/06/2012, Mundo, p. 16

Presidente destituído e o sucessor montam cada qual a própria equipe e anunciam que vão à cúpula do Mercosul, no fim da semana

Três dias depois do impeachment relâmpago que destituiu o presidente Fernando Lugo, na sexta-feira, o Paraguai assistiu ontem à formação de dois governos. Lugo, que de início havia se submetido à condenação do Congresso, declarou-se em resistência pacífica, instalou um "gabinete de restauração democrática" e chegou a chamar a si mesmo de "presidente". A Suprema Corte, no entanto, rejeitou ontem o apelo do mandatário destituído, que havia questionado a legalidade do processo, e o Tribunal Superior de Justiça Eleitoral (TSJE) ratificou o vice Federico Franco como novo presidente e descartou a convocação de uma eleição antecipada. Franco, por sua vez, concluiu a nomeação de seus ministros e, com eles, prestou o juramento de posse. O novo chanceler, José Félix Fernández Estigarribia, ironizou as declarações do adversário e ameaçou-o com ações legais: "Lugo é um ex-presidente e não tem função administrativa. Isso é uma piada".

A disputa entre os dois presidentes com seus gabinetes desembarca na quinta-feira em Mendoza, na Argentina, onde se realiza a reunião de cúpula do Mercosul, com a crise paraguaia dominando a agenda, originalmente dedicada às relações comerciais do bloco. Os demais membros — Brasil, Uruguai e Argentina, que exerce a presidência rotativa — anunciaram no domingo que o Paraguai está suspenso do encontro, mas tanto Franco quanto Lugo declaram que irão a Mendoza. O novo chanceler paraguaio criticou a atitude dos sócios e questionou a sanção sumária imposta a seu país: "É curioso que países que questionam a brevidade dos prazos no julgamento político (de Lugo) nos acionem sem nos dar direito de defesa". Fernández acrescentou que lutará para reverter a punição e para evitar que ela seja estendida à União de Nações Sul-Americanas (Unasul), que deve realizar um encontro extraordinário à margem da reunião do Mercosul.

O presidente destituído, estimulado pena condenação generalizada do impeachment pelos governos latino-americanos, insistiu em denunciar o novo governo constitucional, "instalado depois de um golpe de Estado parlamentar", mas negou que seu "gabinete de restauração" seja um governo paralelo. Lugo esclareceu que a equipe vai apenas monitorar o trabalho do novo presidente e analisar os processos democráticos do país. "Esta é uma demonstração de que Lugo continua sendo o presidente", afirmou ao jornal argentino La Nación o ex-ministro da Habitação Gerardo Rolón. O ex-presidente reforçou que não ajudará Franco a melhorar a imagem internacional do país. "Há um descontentamento. Não podemos esconder, por mais que digamos que não aconteceu nada", advertiu. "Se não aconteceu nada, por que não convidam o novo governo para o Mercosul? Por que a retirada dos embaixadores?", desafiou.

Embora Lugo tenha cogitado a ideia de pedir a antecipação do pleito presidencial, o TSJE fez questão de ressaltar que Franco "deve completar o período constitucional 2008-2013". Como o novo governo foi legitimado, não é possível mudar o prazo das eleições, justificou o tribunal. Para o escritor e especialista em política latino-americana James Bosworth, que vive na Nicarágua, é improvável que o ex-presidente volte ao poder. "Mas, ao usar a pressão para lembrar às pessoas do modo injusto pelo qual foi destituído, ele pode continuar uma figura influente e se tornar um fiscal do governo", estimou ao Correio. Bosworth acredita que o ex-bispo aceitou a decisão legislativa na última sexta-feira para evitar uma crise constitucional instantânea, que poderia resultar em mais instabilidade e violência. "Ainda assim, ele vê a ação do Congresso como inconstitucional e não democrática."

"Resistência"

Já a partir de hoje, porém, movimentos políticos, sindicatos e outras organizações que apoiam Lugo iniciarão "uma série de mobilizações", inclusive o bloqueio de estradas, para lutar pela restituição do poder ao mandatário cassado. "Começaremos localmente e queremos avançar, talvez, até uma grande marcha sobre Assunção", informou à imprensa Ricardo Canese, dirigente da Frente Guasú, coalizão de 19 partidos políticos que apoia Lugo desde a campanha eleitoral. A Frente Guasú uniu-se à Frente Nacional pela Defesa da Democracia no Paraguai, que decidiu iniciar a campanha após reunir-se com o presidente destituído. A frente terá uma página na internet, www.paraguayresiste.com.

Presença polêmica

O general reformado Lino Oviedo (D), que passou exilado no Brasil entre 2000 e 2004, esteve presente no juramento do presidente Federico Franco e de seus ministros. Durante o evento, no Palacio de Los López — sede da presidência —, Oviedo negou ter pedido vagas no governo para seu partido, o Unace, em troca de apoio a Franco. "Não pedimos (cargos) nem para jardineiro do palácio", disse ao jornal paraguaio Ultima Hora.

Cautela no Planalto

Renata Tranches

A Organização dos Estados Americanos (OEA) se reunirá hoje extraordinariamente para avaliar a crise política no Paraguai e analisar eventuais medidas. No Brasil, o governo discutiu ontem a situação e o Itamaraty reiterou que qualquer decisão futura será de cunho político e não prejudicará "os cidadãos paraguaios". Em um encontro com ministros no Palácio do Planalto, a presidente Dilma Rousseff recebeu informações do embaixador brasileiro no Paraguai, Eduardo dos Santos, chamado para consultas na noite de sábado. A presidente também participou de um videoconferência do Mercosul com os colegas José Mujica, do Uruguai, e Cristina Kirchner, da Argentina, que recebia em Buenos Aires o primeiro-ministro da China, Wen Jiabao. A conversa excluiu o Paraguai, suspenso temporariamente do bloco, e ocorre quatro dias antes da cúpula de Mendoza, na qual o Brasil assumirá a presidência rotativa do órgão. No encontro, o futuro do Paraguai estará em pauta. Também em Mendoza, na sexta-feira, os líderes da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) tratarão do tema em uma reunião paralela. Marcada inicialmente para amanhã, a reunião com os embaixadores dos países-membros da OEA, em Washington, foi antecipada para hoje. Um comunicado dizia que a situação do Paraguai será abordada e, "se necessário, serão tomadas as decisões com que o Conselho Permanente concordar". O Brasil estará representado pelo embaixador Ruy Casaes. Fontes do Itamaraty não confirmaram se será votado o afastamento do Paraguai. Caso a punição seja proposta, o Brasil terá posição favorável, como vem fazendo nos demais órgãos regionais. A porta-voz do Departamento de Estado americano, informou que a secretária Hillary Clinton conversou sobre o assunto, durante o fim de semana, com o colega brasileiro, Antonio Patriota. O Brasil tem sido cauteloso ao tratar da crise paraguaia. Nenhum comunicado foi divulgado após a reunião no Planalto, na qual estiveram presentes, além de Patriota, o ministro da Defesa, Celso Amorim e o assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia. Segundo o Correio apurou com fontes no Planalto, o embaixador brasileiro em Assunção chegou ontem a Brasília e participou do encontrou para relatar os recentes episódios. Segundo o Itamaraty, Santos tem estado em constante contato com o governo brasileiro e, mesmo antes do impeachment, na sexta-feira, já havia relatado a situação de isolamento político do presidente destituído, Fernando Lugo. O ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, reconheceu que a rápida deposição de Lugo causou "perplexidade e estranheza" ao governo brasileiro. Na sua avaliação, o impeachment vai na contramão dos fatos recentes na América Latina. Carvalho procurou evitar polêmicas com a questão e disse que tomaria cuidado com os adjetivos em respeito ao país vizinho.

Colaboraram Denise Rothenburg e Leandro Kleber

Já começamos a resistência pacífica e um não reconhecimento da presidência que se instalou depois do golpe de Estado parlamentar"

Fernando Lugo, presidente destituído do Paraguai

Lugo é um ex-presidente e não tem função administrativa. Isto é uma piada. Se ele falar como presidente, vai sofrer sanções da lei paraguaia"

José Félix Fernández Estigarribia, novo chanceler do Paraguai