Título: Punição seletiva
Autor: Queiroz, Silvio;
Fonte: Correio Braziliense, 29/06/2012, Mundo, p. 16

Mendoza (Argentina) — No intenso debate que marcou o primeiro dia da cúpula do Mercosul, em que a Argentina passará ao Brasil a presidência pro tempore do bloco, prevaleceu a opção dos governos brasileiro e uruguaio de limitar ao terreno político a sanção ao Paraguai pelo impeachment relâmpago imposto ao presidente Fernando Lugo. O chanceler Antonio Patriota confirmou para a imprensa brasileira, no fim da tarde, que o governo paraguaio será suspenso apenas de participar das reuniões e dos organismos do bloco, mas não dos deveres e direitos como membro pleno — inclusive o acesso a recursos do Fundo de Convergência (Focem), do qual é o principal beneficiário, como sócio mais pobre.

Com o Paraguai suspenso, no âmbito do protocolo que define a democracia como condição para a participação no Mercosul, fica mais próxima a admissão da Venezuela de Hugo Chávez como sócia de pleno direito. A adesão, ratificada pelos parlamentos brasileiro, argentino e uruguaio, esbarrou na obstrução da maioria do Congresso paraguaio, como parte das escaramuças políticas com Lugo. Patriota admitiu que o sinal verde para a Venezuela "esteve presente" nas discussões de ontem e estará sobre a mesa, hoje, nas discussões entre a anfitriã, Cristina Kirchner, e os colegas Dilma Rousseff e José Mujica (do Uruguai) — além do próprio Chávez.

A suspensão do Paraguai, que será formalizada pelos chefes de Estado, é fruto de um consenso costurado desde o fim de semana passado, quando uma missão de chanceleres da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) acompanhou o processo sumário contra Lugo. "Lamentamos muito essa situação, em virtude dessa missão determinada pela sessão de emergência da Unasul que a presidente Dilma convocou à margem da Rio+20. Estivemos no Paraguai, constatamos que não houve pleno direito de defesa para o presidente Lugo e isso levou à constatação de que não existe plena vigência democrática", declarou Patriota.

Mas, diferentemente do que sinalizava a dura reação da Argentina, não haverá medidas de cunho econômico contra o governo de Federico Franco. "O entendimento é de que o Protocolo de Ushuaia tem uma primeira frase que fala na suspensão da participação nas reuniões e uma segunda que fala em suspensão dos direitos e obrigações", observou o chanceler brasileiro. "A decisão foi de nos circunscrevermos à primeira frase." Embora Patriota tenha evitado confirmar, em nome de não se antecipar à declaração que os chefes de Estado farão hoje, a punição vai vigorar até a eleição de um novo presidente no Paraguai, prevista para abril. O país poderia voltar a participar da cúpula a ser realizada no fim do primeiro semestre de 2013.

Barrado

O consenso que os governantes do Mercosul e da Unasul procurarão exibir hoje foi construído em negociações intensas que se seguiram às fortes declarações e medidas adotadas por Cristina Kirchner desde a noite em que foi aprovado o impeachment de Lugo, quando a presidente argentina anunciou que não reconheceria o novo governo. No dia seguinte, quando os demais membros do bloco firmaram nota suspendendo o Paraguai da cúpula de Mendoza, Buenos Aires retirou o embaixador de Assunção e, desde então, adotou uma política de bloqueio total à participação paraguaia em qualquer instância do encontro.

Ainda no fim da manhã de ontem, o vice-presidente do Parlasul (Parlamento do Mercosul), o deputado paraguaio Ignacio Mendoza Unzaín, foi barrado da cúpula, um incidente que deu caras e nomes à crise instalada no bloco. "Recusaram-me a credencial por eu integrar a delegação do Paraguai", protestou. Mendoza pertence à União Nacional dos Cidadãos Éticos (Unace), partido encabeçado pelo general reformado Lino Oviedo, que tem sido visto em conversas com o presidente Federico Franco.

A linha dura da chancelaria argentina, que controla o credenciamento para todos os eventos do encontro, faz coro com o forte discurso feito na véspera pelo ministro Héctor Timerman na Cúpula Social, uma das reuniões que se realizam paralelamente ao encontro de chefes de Estado. Falando diante de representantes de organizações sociais, em um clima influenciado pela vigorosa mobilização sindical dos últimos dias na Argentina, Timerman invocou uma ameaça generalizada aos governos de esquerda no continente — começando por seu próprio país.

"Há interesses poderosos (de setores) que pretendem contornar Cristina Fernández de Kirchner", disparou o chanceler argentino, fazendo menção explícita às disputas entre a presidente e o grupo empresarial que controla o jornal Clarín. Timerman retomou o ataque às "manobras golpistas" dos grupos econômicos "afetados pelo modelo nacional e popular". Alguns semitons abaixo, o ministro Gilberto Carvalho, que representou no evento a presidente Dilma Rousseff, defendeu "uma manifestação forte e definitiva" dos presidentes do bloco "contra o que ocorreu no Paraguai". Na sua avaliação, a destituição de Lugo "vai na contramão de tudo o que temos construído na América Latina".

Renúncia programada Os chanceleres do Mercosul, inclusive o venezuelano Nicolás Maduro, foram surpreendidos no fim da manhã pela renúncia do Alto Representante do bloco, o brasileiro Samuel Pinheiro Guimarães, que deixou Mendoza ontem mesmo. A coincidência do gesto com a crise envolvendo o Paraguai motivou uma bateria de especulações no centro de imprensa montado para a cúpula, tanto mais pelas marcadas posições de esquerda de Guimarães, que foi o segundo do Itamaraty durante quase todo o governo Lula e mantém relação próxima com o ex-chanceler (e atual ministro da Defesa) Celso Amorim. Segundo a reportagem apurou com fontes do governo brasileiro, o Alto Representante havia decidido se desligar do cargo há algum tempo, insatisfeito com o andamento de projetos nos quais apostava — principalmente no âmbito do Focem, o fundo criado para compensar as assimetrias econômicas entre os sócios do bloco. Embora o tema, novamente, tenha no foco o Paraguai, a saída de Samuel Pinheiro teria sido programada para ser formalizada na cúpula de Mendoza apenas porque o embaixador não queria anunciá-la durante a presidência brasileira do bloco, que começará hoje, com a transferência do posto entre Cristina Kirchner e Dilma Rousseff. Um indício de que o impeachment de Fernando Lugo não interferiu com a saída do Alto Representante foi a notícia de que os chefes de Estado do Mercosul anunciarão a liberação de verbas da ordem de US$ 60 milhões a US$ 65 milhões ao Paraguai. O crédito será liberado no âmbito do Focem, que tem o Brasil como o maior contribuinte e o Paraguai como o maior beneficiário. (SQ)

Mudanças em Assunção

O Congresso do Paraguai escolheu ontem o senador Óscar Denis, do Partido Liberal Radical Autêntico, como o novo vice-presidente do país. Enquanto Denis era indicado, o atual presidente, Federico Franco, trocava parte da cúpula militar. Em decisão tomada por 26 senadores e 58 deputados, ficou definido que Óscar Denis assumirá as antigas funções de Franco. O Partido Colorado, segundo maior do país, e os partidários do ex-presidente Fernando Lugo não foram à votação. A previsão é de que o novo vice, que já foi ministro da Agricultura e governador do departamento (estado) de Concepcíón, ocupe o cargo até 15 de agosto de 2013, data prevista para novas eleições presidenciais.

Já o antigo vice-presidente e atual mandatário, Federico Franco, compareceu à sede do comando das Forças Armadas e mudou parte da cúpula militar paraguaia. Jorge Francisco Ramírez e Pablo Ricardo Luis Osorio controlarão o Exército e a Marinha, respectivamente. A destituição de Lugo ainda desperta a revolta de personalidades políticas.

O ex-presidente de Honduras, José Manuel Zelaya, solidarizou-se com o ex-bispo. Em 2009, ele foi preso, destituído e obrigado a embarcar em um avião, com destino à Costa Rica. "Há muitas semelhanças na forma como as destituições foram conduzidas. Talvez a única diferença tenha sido a de que os militares me tiraram do poder à bala", afirmou. O presidente do Equador, Rafael Correa, se pronunciou contra o governo "ilegítimo" de Franco.

A ministra da Defesa do Paraguai, María Liz Garcia, denunciou uma reunião entre o chanceler venezuelano, Nicolás Maduro, com militares paraguaios. O encontro teria ocorrido no Palácio de Los López, pouco antes do impeachment de Lugo. Maduro pediu aos oficiais que defendessem o então mandatário. Os militares acataram o Congresso.

84 Número de parlamentares que escolheram o senador Óscar Denis para o cargo de vice-presidente.