O globo, n. 31134, 03/11/2018. Mundo, p. 19

 

Nova direção

03/11/2018

 

 

Bolsonaro ameaça cortar relações com Cuba e é criticado por diplomatas

O presidente eleito Jair Bolsonaro indicou que pretende romper laços diplomáticos com a ditadura cubana. Ontem, em entrevista ao jornal “Correio Braziliense” e à TV Rede Vida, afirmou que não há motivo para manter a embaixada brasileira em Havana. — Olha, respeitosamente, qual o negócio que podemos fazer com Cuba? Vamos falar de direitos humanos? Foi acertado há quatro anos, quando Dilma (Rousseff) era presidente, que se alguém pedisse exílio (no Brasil, como os médicos cubanos), seria extraditado. Dá para manter relações diplomáticas com um país que trata os seus dessa maneira? Queremos o Mais Médicos? Podem continuar. Revalida, salário integral e traz a família para cá. Eles topam? — afirmou Bolsonaro, em uma declaração que logo gerou críticas de diplomatas.

Pelo Mais Médicos, citado por Bolsonaro, trabalham hoje no Brasil 8.612 cubanos. Eles somam 51% dos profissionais do programa, em um total de 16.721 médicos que atuam em regiões mais carentes e remotas do país. Os cubanos são contratados por meio de um convênio intermediado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), um braço da Organização Mundial da Saúde (OMS), da ONU. O governo da ilha fica com 70% dos salários dos seus profissionais, que recebem entre R$ 3 mil e R$ 4 mil.

Ao mencionar o Revalida, o presidente eleito se refere ao exame de validação de diplomas exigido a estrangeiros para atuar no Brasil, que no caso do Mais Médicos não é exigido de nenhum profissional de fora—oque, na época da criação do programa por Dilma, foi criticado pelas entidades médicas brasileiras. Sobre a falta de permissão de Cuba para que os profissionais tragam suas famílias, houve um caso emblemático em 2014, quando a médica cubana Ramona Rodríguez desertou e, auxiliada pela oposição no Congresso, veio a público mostrar o contrato do programa. Segundo o texto, ela poderia trazer parentes ao Brasil, mas alegava que isso não lhe foi permitido.

Para o embaixador aposentado Rubens Ricupero, o fato de Cuba ser uma ditadura de partido único não é o que determina as relações diplomáticas do Brasil, até por uma questão de coerência.

— O princípio da diplomacia brasileira é o universalismo, ter relações com todos os países independentemente da orientação política. Se tiver que aplicar essa medida, como ficaria a Rússia, como ficaria a China? O tempo em que não tínhamos relações com todos os países ficou para trás. Seria um retrocesso a mais — afirmou Ricupero.

Medida seria extrema

O Brasil mantém relações com Cuba desde o início do século XX, reconheceu a Revolução Cubana e, em 1962, absteve-se da votação que suspendeu a ilha da Organização dos Estados Americanos (OEA). Foi no governo militar, em 1964, que Brasília cortou relações com Havana, para retomá-las em 1986, com a redemocratização.

Para o professor de Relações Internacionais da PUCRio Tomaz Paolielo, “é importante ressaltar que a maioria dos países tem relações normais com Cuba, com a exceção dos Estados Unidos”. Mesmo o presidente americano, Donald Trump, não desfez o reatamento de relações promovido por seu antecessor, Barack Obama — Trump congelou o relacionamento entre os dois países. — Um corte de relações diplomáticas seria uma medida extrema —afirmou o professor . — A relação com Cuba é ainda muito fetichizada no Brasil, especialmente por setores da direita. O Brasil teve uma posição histórica no pós revolução na tentativa de engajar

o regime cubano, confrontando a posição dos EUA, mas rompeu as relações em 1964. Desde o governo Sarney, o Brasil mantém relações boas com o país, explorando possibilidades de negócios e parcerias —acrescentou Paolielo. O país é um importante fornecedor de alimentos para a ilha e exporta mais do que compra de Cuba. O Brasil embarcou R$ 263 milhões entre janeiro e setembro deste ano,o que coloca o país na 64ª posição entre os destinos dos produtos brasileiros. Por outro lado, comprou de Cuba R$ 32 milhões no período.

Havana quer manter laços

Nesta semana, o ministro do Comércio Exterior cubano, Rodrigo Malmierca, afirmou que Cuba quer manter relações com o governo brasileiro. —Não temos problemas em nos relacionar com aqueles que pensam de forma diferente de nós. Isso seria intolerante —disse Malmierca. —Não temos dificuldade em manter o programa Mais Médicos, que é realizado através da Organização Pan-Americana de Saúde. Não é um programa bilateral. Não temos medo — completou o cubano. Recentemente, uma missão brasileira foi a Havana para renegociar o pagamento de uma dívida de Cuba com o Brasil, que, ao final deste ano, chegaria a US$ 100 milhões. Segundo a diplomacia brasileira, a ilha pediu para reprogramar as cotas de 2018 e 2019. A dívida corresponde, em parte, à construção do porto de Mariel — que fica na região oeste, a 40 km de Havana —, financiada em parte pelo BNDES, por meio da linha de promoção da exportação de bens e serviços brasileiros. Como ocorre nesses casos, o BNDES pagou a Odebrecht, responsável pela obra, e Cuba virou credora do banco.

Para Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington, é cedo para julgar se Bolsonaro vai concretizar as medidas que anuncia. — É natural que o presidente eleito não tenha receptividade a governos de esquerda —disse ao GLOBO. —Hoje o Brasil praticamente já não tem relações com Cuba, porque Cuba retirou o embaixador aqui, criticou muito o governo Temer, apoiou a teoria do golpe do impeachment. Mas o Brasil, independentemente do governo, tem alguns interesses. Temos uma dívida a receber de Cuba, então se você cortar as relações com o país, pode deixar de receber milhões de dólares.