Título: Sem inflação, planejar o futuro ficou mais fácil
Autor: Abreu, Marcelo
Fonte: Correio Braziliense, 01/07/2012, Economia, p. 15

Era 1º de julho de 1994. Dia histórico. Data que marcaria para sempre mudanças profundas nos rumos do país. No Banco Central, corre-corre. Todos os poderes da capital se agitavam. Mudanças radicais na economia se anunciavam. Um novo plano era lançado. Ninguém entendia bem o que aquilo iria significar. Apreensão. Expectativa. Haveria congelamento de preços? Confiscos da caderneta de poupança? Um novo pacote? Longe dali, no Hospital Regional do Guará (HGR), uma menina de 3,5 kg e 49 cm berrava. Passava das 4h da madrugada daquela sexta-feira, quando ela rompeu os laços do cordão umbilical. Veio determinada, cheia de saúde. O choro, forte e cheio de vida, anunciava as boas-novas. Naquele dia, a vida dela e de toda a família mudaria para sempre. Alexandra Carolina Paiva Magalhães completa hoje 18 anos. É domingo. A família de Ceilândia vai sair para almoçar num restaurante em Taguatinga Sul. Coisa chique. Só os muito bem de vida frequentam. Somando os cinco irmãos mais velhos, pai, mãe, avó paterna, primos e tios, pelo menos 30 pessoas se juntarão à festança. "E não vai ser nada de almoço americano, onde cada um leva a sua parte. Comigo não tem disso. Faço questão de bancar", orgulha-se o pai, servidor público aposentado e professor de literatura da rede pública, Porfírio Magalhães, 62 anos, cearense de Santa Quitéria, em Brasília desde 1960.

A família Magalhães estará toda lá. Alexandra, que nasceu no Guará, mas sempre morou em Ceilândia, vive dias de ansiedade. Ganhará a maioridade. E faz planos de tirar a tão sonhada carteira de motorista. Estudante do segundo semestre de pedagogia do IESB Oeste, a moça quer ser professora — como os três irmãos mais velhos. "Sempre quis isso. Desde pequena, brinco de dar aula", conta. A mãe, a dona de casa Maria Gilda Magalhães, 53 anos, cearense da mesma Santa Quitéria, confirma, cheia de contentamento: "Ela nasceu para ser professora. Gosta de ensinar as pessoas. É dom mesmo".

Sem sustos

E a vida na casa de três quartos e terraço amplo na QNM 8 de Ceilândia Norte segue. Desde aquele 1º de julho de 1994 — lançamento do Plano Real —, alguma coisa mudou para a família. E mudou para melhor. Alexandra percebe isso na comparação do que teve e os irmãos mais velhos não tiveram, no conforto que tem. Nos projetos que faz e na certeza de que se pode planejar. Pelo menos sem grandes sustos. "Meu pai sempre me contou que nasci num dia histórico para o Brasil, que a partir dali começou a estabilização da economia. Eu falo pros meus amigos que nasci num dia histórico", diz. E eles? "Não dão muita bola, porque não sabem o que era viver num país com inflação e cheio de descontrole. Eu também só sei porque meus pais me contaram e porque pesquisei."

E contabiliza, orgulhosa de tudo que conquistaram, os ganhos da família: "As coisas melhoraram muito aqui em casa. Meu pai comprou dois imóveis — uma casa em Ceilândia Norte e um apartamento no Centro. E está de carro novo. Eu tenho notebook, celular de última geração". E não para por aí: "A gente viaja de avião todos os anos pra Fortaleza. Vai a família inteira nas férias de julho". Quer mais novidade? Porfírio e Gilda foram a Cuba, em 2000, para uma feira de livros. Pretendem viajar para o exterior novamente.

Alexandra não conheceu inflação. Um mês antes de ela nascer, o país estava sem controle. As taxas passavam dos 50%. Remarcações de preços eram constantes. Aconteciam do dia para a noite. Corre-corre para estocar mercadoria. Ninguém sabia como as coisas amanheceriam. Alexandra não conheceu as temerosas maquininhas dos supermercados, aquelas inimigas mortais do consumidor. "Minha mãe me contava que um dia o preço era um, no outro tudo tinha aumentado. Eu não vivi isso. Ainda bem", comemora.

A estudante de pedagogia tem experimentado os prazeres de viver num país com estabilidade econômica. "Meu pai me dá R$ 250 de mesada por mês. Eu saio, vou ao shopping, compro o que preciso, coloco crédito no celular e ainda faço poupança", conta. A mãe ratifica: "Ela sabe multiplicar o dinheiro". Sabedora de como essa calmaria na moeda teve início, ela explica: "O Real começou com o Itamar, no tempo que o Fernando Henrique era ministro da Fazenda. Quando o FHC virou presidente, ele manteve o plano, e o Lula continuou. Sou fã do Lula". Vida difícil

Nem sempre as coisas foram fáceis para os Magalhães. "Minha avó, que era viúva, me conta que, para o meu pai estudar, ela trabalhou muito costurando. Isso no início de Brasília. Eles não tinham dinheiro para quase nada. Tudo era complicado", diz Alexandra. A avó, Felipa Farias Magalhães, 86, emenda a conversa da neta caçula: "A coisa era difícil, meu filho. Cada moeda que mudava era pra pior. Esse tal de Cruzado e o Cruzeiro foram uma negação. A melhor coisa que aconteceu pro Brasil foi esse Real. Real é real mesmo. A gente pôde ter mais sossego".

Porfírio, o pai professor de literatura, continua: "Se não estamos mergulhados num mar de lama, no fundo do poço, como a Grécia, devemos isso ao Real". Alexandra escuta. Parece entender o que a avó e o pai comentam. Em 1º de julho de 1994, naquela manhã de sexta-feira, teve festa na casa simples dos Magalhães. A mesma casa onde vivem há 40 anos. Apesar das incertezas do país, o nascimento da menina trouxe esperança para a família. "Eu acreditei que o Brasil estava mudando", diz o pai. Gilda, a mãe, intuiu. Alexandra entrega: "Minha mãe sempre me diz que eu sou o verdadeiro real". Gilda ouve a filha falar. Disfarça a emoção em silêncio.

E a maior prova de que alguma coisa de fato mudou, Alexandra percebe ao seu redor, na rua simples onde mora. "Meus vizinhos estão entrando na faculdade. Hoje, as pessoas têm mais acesso aos estudos. Os filhos da minha madrinha estão todos na universidade."

Poema de 15 anos

E é lá, na Ceilândia que insiste em crescer, de trânsito agitado, comércio próspero e uma população que beira os 400 mil habitantes, que Alexandra sonha em fazer a sua vida profissional. "Depois de formada, vou tentar mestrado na UnB (Universidade de Brasília), fazer um concurso público e ser professora. Quero ensinar pra crianças", planeja a moça.

A faculdade particular da estudante de pedagogia é paga pelo pai. Assim como o curso de língua estrangeira que frequentou por seis anos. "Ela é formada em inglês", ele diz, feliz pela conquista da filha caçula. E acrescenta: "Pude dar a ela e aos meus filhos todas as condições para ter bons estudos. Mas isso tem a ver com a estabilidade da moeda e com a possibilidade de planejamento".

Foi a certeza de que se podia planejar, que até a festa dos 15 anos de Alexandra foi meticulosamente pensada. Na chácara de uma vizinha, Porfírio reuniu cerca de 100 pessoas — entre parentes e amigos — para um churrasco que só teve hora para começar. No meio da festa, ele a presenteou com um poema. E o intitulou: "Alexandra, Rainha". O professor Porfírio sabe brincar com as palavras. Na lembrancinha do aniversário, os convidados ganharam o poema impresso. E saíram de lá emocionados:

"Todo o sistema Não se fará vítima Sobre as bobagens deste tempo. Há alguém sobre a lua Na mão uma pua pura Que pulsa e fura o sistema Alexandra, a pequena, a enorme Sorri, grita, chora, é a rainha Julho, primeiro, verdadeiro real Irreal momento, vivemos Sobre os segredos, as vidas Os tempos: tudo é a rainha Alexandra".

Num passeio pela frenética Ceilândia, ônibus lotados, trens do metrô idem, ruas com gente e histórias espalhadas por todos os cantos, Alexandra vai à padaria. Conta que viveu a vida toda ali. Fala com orgulho do lugar onde vive. "É verdade que a cidade já foi mais calma, mas aqui ainda é bom pra morar. A gente conhece os vizinhos. Se sente em casa", diz.

Planos? Com um sorriso solto, a moça de 18 anos responde: "De poder fazer as coisas que eu quero. E hoje a gente pode. E sei que tenho mais oportunidades". Ela fala com a convicção de quem vive mesmo num país melhor.

"Meu pai sempre me contou que nasci num dia histórico para o Brasil, que a partir dali começou a estabilização da economia. Eu falo pros meus amigos que nasci num dia histórico. Eles não dão muita bola, porque não sabem o que era viver num país com inflação e cheio de descontrole"

Alexandra Carolina Paiva Magalhães, estudante

Troca de moeda exigiu disciplina

» SÍLVIO RIBAS

O Plano Real nasceu no governo Itamar Franco, quando Fernando Henrique Cardoso, seu ministro das Relações Exteriores, passou a ocupar o Ministério da Fazenda. A data de 1º de julho refere-se apenas ao momento em que foi implantada a profunda reforma monetária que extinguiu o cruzeiro real, moeda vigente até então, prevista com grande antecedência. Um mês antes, havia sido instituída a Unidade Real de Valor (URV), com o intuito de preparar a população para a revolução que estava por vir.

O processo de mudança começou, efetivamente, em agosto de 1993, quando o cruzeiro, em circulação desde março de 1990, virou cruzeiro real. A partir daí, definiu-se uma longa estratégia para fazer a troca de uma moeda fraca por outra forte, sob a liderança da equipe econômica formada basicamente por uma turma de professores do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

Foram meses de debates internos, envolvendo os economistas André Lara Resende, Edmar Bacha, Gustavo Franco, Pérsio Arida e Pedro Malan. Eles traçaram as linhas gerais do plano, enquanto buscavam apoio mínimo necessário para aprovar reformas no Congresso Nacional. Em junho de 1994, quando a maioria dos brasileiros só pensava na Copa do Mundo dos Estados Unidos, a equipe econômica passava dias e noites em debates sem fim no Ministério da Fazenda.

O plano culminou com a nova moeda, desvinculada da chamada inércia inflacionária que marcou um longo período da economia brasileira. A população, empobrecida por quase 20 anos de hiperinflação, compreendeu e abraçou com esperança o Real. Para dar credibilidade à moeda, decidiu-se pela paridade ao dólar. A âncora cambial duraria até 1999, quando o Brasil adotou o regime de câmbio flutuante, como parte de um pacote de socorro do Fundo Monetário Internacional (FMI).