O Estado de São Paulo, n. 45705, 06/12/2018. Espaço aberto, p. A2

 

16,38%? Três Poderes contra o povo

Roberto Macedo
06/12/2018

 

 

Essa foi a porcentagem do reajuste recém-outorgado para os salários dos ministros do STF. Temer sancionou a benesse, com o que perdeu enorme oportunidade de se redimir de erros de seu governo, que superam as virtudes. Mas seria injusto ignorar o papel dos que conduziram o processo no próprio STF e no Senado, pois também atuaram no acordão sobre reajuste.

Uma de suas distorções é ser claramente inoportuno do ponto de vista financeiro e servir de mau exemplo. O setor público brasileiro tem dívida perigosamente crescente, pois apresenta enorme rombo orçamentário, marcado por elevado déficit primário, ao qual se soma uma enorme conta de juros. Disso resulta um déficit final que, avaliado como porcentagem do PIB, está muito distante de padrões internacionais tidos como razoáveis.

O resultado primário é a diferença entre a receita e a despesa desta, excluídos os juros da dívida pública, em razão do que um déficit nessa conta é uma aberração. Imagine o leitor se gastasse em despesas triviais mais do que ganha, e também ficasse sem condições de pagar parte dos juros de uma enorme dívida, que assim seguiria aumentando.

Em setembro o déficit primário do setor público foi de 1,3% do PIB e a conta de juros, de 5,9% do PIB, totalizando um déficit final de 7,2% do PIB. Mais que o dobro do limite prudencial para esse déficit na zona do euro, de 3% do PIB. E usualmente sem déficit primário. E, se necessário, com um superávit desse tipo para cobrir parte dos juros da dívida pública de modo a evitar seu crescimento como proporção do PIB. São porcentagens só na aparência pequenas, pois incidem sobre enormes valores do PIB.

Nosso governo central só tem condições de pagar esse reajuste porque faz déficit primário, e aumenta a dívida e/ou tira o dinheiro de gastos como os de educação e saúde. Para piorar as coisas, num efeito cascata o reajuste elevará remunerações nos três Poderes, e repercutirá também noutros entes federativos, em particular nos Estados, onde ganhos de magistrados e de outros servidores no âmbito do Judiciário e em outras carreiras constituem proporção do salário dos juízes do STF. Recentemente, soube que coronéis da Polícia Militar de Minas Gerais têm o seu salário ligado ao de desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado, com o que também se credenciarão ao reajuste. Só que esse Estado, como outros, está literalmente quebrado, até atrasa o pagamento de salários, uma situação que o efeito cascata agravará. No Estado de São Paulo estima-se que o efeito cascata será de perto de R$ 1 bilhão por ano, cerca de metade no âmbito estadual e metade nos municípios.

O ministro Carlos Marun, da Secretaria de Governo de Temer, publicou ontem na Folha de S.Paulo o artigo O efeito cascata é cascata, e apresentou a sua. Em particular, afirmou que “não existe nada no nosso ordenamento jurídico que estabeleça a automaticidade da extensão do reajuste do reajuste dos ministros do STF aos funcionários públicos do país na sua totalidade”. Ora, quem aponta o efeito cascata não fala nessa totalidade de funcionários. E para esse efeito Marun dá sua receita simplista e inaplicável: “Cada poder de cada unidade da federação terá que analisar suas contas e definir quanto pode pagar de reajuste. O salário dos ministros do Supremo representa um teto, mas não mais que isso”.

Ao contrário, no referido ordenamento jurídico há regras que garantem o efeito e a realidade é esta: foi aprovada essa pauta-bomba em Brasília e os Estados e municípios que se arranjem. Provavelmente vão se voltar para a União e implorar dinheiro para pagar a conta, e noutro efeito, o bumerangue.

Marun também disse que Temer “agiu em absoluta conformidade com as responsabilidades de sua função”. Fez o contrário, mas não sozinho. A ideia do reajuste estava no STF havia tempos. A ministra Cármen Lúcia, de louvável atuação contrária, tentou segurálo, mas o ministro Lewandowski conseguiu pautar o assunto numa reunião em 8 de agosto e foi aprovado por 7 a 4 o seu avanço. O sucessor de Cármen Lúcia, Dias Toffoli, levou o pleito ao Senado, com apoio de colegas que em editorial recente este jornal chamou de “sindicalistas togados”.

Ali foi aprovado a toque de caixa, após ser pautado por seu presidente, Eunício Oliveira, numa decisão estritamente pessoal, à revelia do presidente da comissão que examinava o assunto. Na Casa também houve grande lobby de magistrados que seriam beneficiados, a quem Toffoli posteriormente agradeceu pela força. E do lado de quem votou havia vários senadores com pendências judiciais.

Esse reajuste é imoral, mas essa é uma avaliação subjetiva e cada um tem a sua, o que gera uma discussão interminável. Mas é inegavelmente aético, avaliação que se assenta em verificar se a decisão beneficiou ou não o bem comum. Isso claramente não aconteceu, pois o ganho foi para gente no topo da distribuição de renda do País, será pago por gente até lá de baixo e agravou as já combalidas finanças públicas.

Também vi críticas de que o reajuste seria inconstitucional, citando legislação de questões orçamentárias. Mesmo sendo, quem julgaria um recurso ao STF sobre o assunto? Ora, os seus próprios beneficiários. Mas seria bom que viessem recursos, para marcar responsabilidades.

Entendo que o reajuste fere a Constituição também por outra razão. No seu artigo 1.º ela diz que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (...).” Ora, esse reajuste não emanou do povo – aliás, é uma afronta a ele – e tampouco se pode afirmar que foi aprovado em seu nome. Veio de um acordão maléfico entre os três Poderes e contra o povo. Alguém discorda? Que tal um plebiscito sobre o assunto?

 

ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR